sexta-feira, 21 de agosto de 2015

X-MEN NOTURNO E AS REFLEXÕES HEROICAS E SOCIAIS


Kurt Wagner, o mutante Noturno, é um dos mais populares da franquia dos X-Men, o grupo de super-heróis da Marvel Comics criado em 1963 por Stan Lee e Jack Kirby. Os super-heróis mutantes, com a evolução de suas histórias, desenvolveram uma grande aproximação com a justiça e as causas sociais, que criaram conflitos muito interessantes para tais contos. Os X-Men foram o reflexo do seu tempo, nos anos 60 o mundo vivia o medo da Guerra Fria, a Guerra do Vietnã, na América surgiam os primeiros movimentos organizados em favor dos direitos civis e as questões raciais, e a nação norte-americana era considerada doente por muitos, visto os seus grandes problemas sociais.
Noturno é um homem de aparência demoníaca, mas que possui uma notável nobreza intrínseca. No entanto, nunca manteve com sucesso uma própria série, e com o tempo tornou-se mais um personagem secundário para os X-Men. Ficou conhecido como a "consciência" dos X-Men, mas isso só significava que, em algum momento decisivo, ele poderia aparecer para dar uma opinião moralizante que os outros personagens poderiam aceitar ou reagir contra, como parte de suas próprias histórias. Noturno é principalmente um suporte, e isso é uma vergonha, porque ele é realmente muito interessante.
 
Giant Size X-Men # 1
Kurt Wagner cresceu no circo, mas desde sempre era visto pela maioria das pessoas como uma aberração. De pele azul, corpo coberto por pelos, possuindo apenas dois dedos em cada pé e três em cada mão, e uma longa cauda preênsil, Kurt dificilmente ganharia quaisquer prêmios para a beleza. Mas (convenhamos) ele é de certa forma adorável. Noturno é sempre o primeiro X-Men para quem os fanáticos anti-mutantes apontam o dedo para dizer "como você pode chamar isso de ser humano?" Então como ele lida com o fato de que a sua própria existência enche as pessoas com, no máximo, repulsa e, na pior das hipóteses, ódio assassino?
 
UXM # 167
Em seu coração, ele é um palhaço, um ator, e, como um artista circense, gosta de se exibir. Kurt assume a persona de um fanfarrão e um brincalhão jovial, porque sabe que as pessoas julgam pelas aparências. Ele não pode mudar a sua aparência física, mas certamente pode mudar a forma de como as suas ações o farão parecer. Se ele pode representar tudo o que há de bom e heroico, o oposto de sua aparência, ele pode conquistar as pessoas. E mais importante, pode se convencer de que é uma pessoa nobre e decente.
 
UXM # 142
Noturno é um grande ator afinal. Ele dá a cada ação que toma uma qualidade exagerada, não apenas para impressionar as pessoas, mas porque acredita que fazendo este papel pode realmente ser nobre e digno. É um grande amigo, sempre vai tentar alegrar um companheiro que está triste, mesmo que também esteja triste por dentro.
 
A Era Escalibur
Nenhum personagem fictício sentiu a picada do fanatismo religioso mais do que Kurt Wagner, ele um cristão católico devoto que, no entanto, enfrentou perseguição mesmo por membros da própria cristandade, bem como pela sociedade em geral. A aversão superficial ao herói devoto Noturno por causa de sua aparência demoníaca aparentemente não é diferente daquela demonização que os grupos fundamentalistas infligem às comunidades que constantemente perseguem.
 
AXM #92
Saga Guerras Secretas. Surge o Beyonder.
O grande contraste entre a sua aparência e a sua fé é uma das características mais interessantes do personagem, um claro exemplo de que não devemos julgar pelas aparências.
Os grupos supremacistas sempre foram um dos maiores problemas sociais da nação norte-americana. Grupos que pregam o ódio, muitas vezes seitas religiosas que se sustentam a partir de sua interpretação particular de versículos bíblicos, inclusive utilizando-se destes argumentos para justificarem a escravidão. Grupos estes autoproclamados cristãos principalmente do sul dos Estados Unidos são as "mães" das muitas das atuais seitas que inundam a América Latina. A pregadora Ellen White, considerada por muitos uma profetiza, influenciou muitas comunidades norte-americanas que congregavam pessoas brancas, e ela desaconselhava a união entre brancos e negros, pregava a segregação racial e teorizava origens para os povos não-caucasianos que não cabe a mim enumerar aqui, por isso aconselho a pesquisar. 
 
AXM v1 #14
O ativista mutante Charles Xavier vs o antropólogo anti-mutante Bolivar Trask. 
Os X-Men nos falam sobre o que é ser diferente e a reação da sociedade frente a essa diferença. Mas as histórias também deixam claro que nem todos os mutantes são oprimidos que buscam aceitação, há também aqueles que são malignos, e os mutantes que devem ser aceitos são aqueles que lutam pelo bem comum, isto é, os heróis. Assim, X-Men é essencialmente um conto sobre ética, convivência pacífica e, principalmente, sobre liberdade. Uma lição valorosa para a realidade onde brigamos entre nós para determinarmos quem é o mais oprimido afinal.
No início de tudo, o vilão Magneto em nada lembrava o agressivo ativista negro Malcom X, estando mais próximo dos violentos e revolucionários Panteras Negras. E o professor Xavier não parecia interessado em defender os direitos mutantes, concentrando-se no combate a estes mutantes malignos, o que faria dele um contrarrevolucionário. Apenas com a evolução das histórias ele se converteria em um tipo de ativista mutante.

X-Men Animated Series
Jubilee: O que nós fizemos contra vocês?
Graydon Creed Jr: Vocês nasceram!
Muitos dos crimes de ódio anti-mutantes são instigados pela ideia de que os mutantes são uma corrupção da natureza ou do "Grande Desígnio de Deus", e, em alguns casos, ambos. Grupos de ódio conhecidos como os Amigos da Humanidade, liderados por Graydon Creed Jr, o meio-irmão humano de Noturno, e os Purificadores, liderados pelo pastor fundamentalista William Stryker, são conhecidos pela perseguição implacável aos mutantes sob essas premissas. Ambos têm uma estranha semelhança com a Ku Klux Klan (a KKK), um grupo de ódio conhecido por promover a segregação racial e crimes violentos contra minorias étnicas - pregam o nacionalismo branco, o anticatolicismo, o antissemitismo, o terrorismo cristão, etc. Poucas pessoas reconhecem a KKK como uma seita protestante do cristianismo. Não estou sugerindo que a KKK deva ser tomada como uma organização cristã legítima (a própria ideia é ridícula), mas é um fato histórico que as suas crenças são baseadas em sua livre interpretação da Escritura. No entanto, da mesma forma como podemos definir claramente o terrorismo fictício dos Amigos da Humanidade e dos Purificadores, grupos de ódio na vida real devem ser vistos como nada mais do que criminosos, independentemente de qualquer afiliação religiosa a qual aleguem pertencer.
 
God Loves, Man Kills
Noturno é religioso, e é muito sincero com relação as suas crenças, é onde reside grande parte da sua profundidade como personagem. O uso da religião pode influenciar um personagem tanto positiva quanto negativamente, dependendo da interpretação dada pelos escritores e da opinião dos leitores. Noturno, alguns interpretariam, é religioso pela mesma razão que ele é um super-herói de capa e espada, porque acredita ser necessário. Ele parece demoníaco, qual a melhor maneira de minar isso do que ser abertamente devoto? Mas para qualquer um (simpáticos ou não ao lado religioso do personagem) isso não quer dizer que ele não acredita, mas que secretamente duvide ser digno, algo que parece ficar claro neste seu recente retorno aos quadrinhos.

AXM # 3
Essa dúvida é importante. Nós leitores sabemos que Noturno é uma pessoa boa e nobre, mas ele parece temer tudo o que realmente é. Inconscientemente, teme ser realmente um monstro e não um nobre heroico. Quando as circunstâncias o forçam a questionar suas ações ou quando reconhece que está escolhendo desempenhar um papel, torna-se paralisado com a dúvida e o medo.

NC # 1
Noturno retornou aos quadrinhos. O personagem foi massacrado pela terrível fase de Chuck Austen nos X-Men, quando somos apresentados ao pai biológico de Kurt Wagner, o mutante também de aparência demoníaca Azazel. Não vou entrar em detalhes sobre esta fase porque seria deprimente demais. Tempos depois, Noturno morreu de forma nobre ao salvar Hope Summers, a messias mutante, do vilão Bastion e, após anos de espera, retornou ao teleportar-se do paraíso para a Terra em uma das ressurreições mais forçadas (porém necessária) já vistas nos quadrinhos, e uniu-se novamente aos X-Men para impedir os planos de seu pai de conquistar o paraíso com um exército de mortos-vivos (!). Mas, em compensação, seu retorno rendeu uma história empolgante, e o reencontro com seus colegas X-Men faz qualquer um fã saudoso das antigas se emocionar.
 
AXM # 6
AXM # 6
O personagem ganhou uma nova e incrível série solo escrita por Chris Claremont, o autor que mais escreveu sobre o personagem, então eu acho que é seguro destacar que, caso você seja um fã e ainda não tenha visto, você deve ver! E também é uma ótima opção para quem ainda não conhece o personagem.
 
O arco inicial foi fortemente baseado em nostalgia, com Kurt lembrando de sua antiga vida, os amores da juventude, e as suas clássicas aventuras.
Kurt está de volta à terra dos vivos e envolto pelas calorosas boas-vindas de sua família adotiva, os X-Men. No entanto, estamos vendo um Kurt profundamente impactado por eventos e inseguro do homem que agora é. Ele também se reencontra com a sua verdadeira mãe, a terrorista mutante Mística. Certamente Mística não seria classificada por alguém como uma "boa" mãe, mas ela é a primeira a perceber que algo mudou em Kurt, e que ele não é exatamente o homem que era.

AXM # 6
AXM # 6
Eu percebo que Azazel está no topo da lista de personagens de apoio menos favoritos, mas eu confesso que gostei muito dele no filme X-Men First Class (bem longe do mero "satanás mutante" dos quadrinhos), e a nova interpretação que deram ao personagem nesta fase dos quadrinhos parece interessante (Legal o fato dele agora ter os seus próprios BAMFS, e fiquemos na torcida para que ele se distancie mais e mais da sua antiga representação e se aproxime da sua versão cinematográfica). Por tudo isso, acaba sendo divertido ver Noturno, Mística e Azazel interagindo.

NC # 5
Kurt está cheio de dúvidas, e não tem ideia se pertence mesmo ao nosso mundo ou se pertence ao mundo que deixou para trás para sempre. Como lidar com isso? Ora, ele se esforça para tentar recuperar o homem que ele era, é claro, ou pelo menos o homem que ele via a si mesmo ser.
Se ele se senta e conversa com seu amigo padre ele pode dizer muito legitimamente que viu o paraíso. A sua volta seria uma expressão da sua fé? Toda a ideia de fé é sobre acreditar em algo sem nenhuma prova tangível. Agora que ele tem a prova tangível e o que isso faz para a sua fé? Isso lhe dá um senso de equilíbrio e um sentido de propósito.

NC # 1
Ele parece querer ver a si mesmo e o seu mundo, nos termos de suas lembranças idealizadas.
Escolhe não pensar sobre o que aconteceu com os X-Men, com o Cisma, com a morte de Charles Xavier, ou com o que seu antigo líder Ciclope significa para ele agora. Em vez disso, ele opta por procurar Amanda, sua irmã de criação e antiga namorada.
 
NC # 2
Kurt não é nada se não tenaz e, desta vez, aparentemente decidiu fazer as coisas funcionarem com Amanda. Mas com a aparição do novo vilão Trimega, descobre no entanto que, assim como com os X-Men, as coisas não são como se lembrava. Este reencontro também trás de volta Margali e serve basicamente para nos lembrar da outra família de Noturno, o clã Szardos.
 
NC # 3
Claremont também nos lembra sobre quem os X-Men realmente são, e aquilo que eles querem realizar no lado não-revolucionário do cisma. E Kurt também dá o primeiro passo em sua nova vida, como um mentor para jovens mutantes, e ainda há a introdução de outros vilões como os Piratas Carmesim.
 

NC # 5


NC # 5

A mutação genética de Noturno torna-o inerentemente profano. No entanto, a mutação genética em si não é algo que possa ser avaliado em um calibre moral. Ter pele azul, orelhas pontudas, e uma cauda não faz Noturno "satânico", e a mutação nada tem a ver com visões religiosas. A perseguição e a aversão ao que Noturno é vem de uma percepção, e não de um fato.
No segundo filme dos X-Men, lançado em 2003, Kurt Wagner é retratado como um homem de oração, buscando na fé a coragem para sobreviver as suas provações, mas também o descreve como sendo sobrecarregado com sentimentos de culpa. Ele carrega marcas em seu corpo (símbolos angelicais) como uma espécie de penitência por seus pecados. Em contrapartida, nos quadrinhos, a fé de Kurt geralmente é retratada como uma fonte de serenidade e como sua motivação para amar e perdoar aqueles que o perseguem.

X-Men 2
 Tempestade (Halle Berry) e Noturno (Alan Cumming)
Noturno e Tempestade tem um química incrível neste filme (assim como nos quadrinhos), e seus diálogos são os melhores. Kurt afirma em um momento que sabe que existem muitas pessoas que o odeiam, mas ele não tem raiva delas, ele na verdade sente pena, porque essas pessoas só conseguem enxerga-lo com os seus próprios olhos. Quando Tempestade retruca dizendo que a raiva pode ajudar a sobreviver naquele mundo violento, Noturno responde que assim também é a fé. Este diálogo mostra que a serenidade do personagem foi preservada em sua adaptação para o cinema.
 
New Mutants # 45
Kitty Pryde
O incrível discurso de Kitty Pryde em Novos Mutantes # 45, quando do suicídio do jovem mutante Larry Bodine, resume o que há de melhor nos X-Men. Assim, Chris Claremont, em seu auge, retrata certos dilemas sociais com muita simplicidade e com um discurso que acerta em cheio estas questões.

Martin Luther King e presidente John F. Kennedy, juntos aos
representantes dos movimentos pelos Direitos Civis dos Negros.
Chris Claremont, através de Kitty, oferece um dos mais belos discursos sobre aceitação e respeito já feitos nas histórias em quadrinhos. Muitos podem até criticá-lo por não manter mais o nível das histórias que escrevia nos anos 80, mas o seu legado é valioso para a história da humanidade, e isso é indiscutível.
 

O que há de tão imponente sobre Noturno é que, mesmo diante da traição, nunca permite o seu coração endurecer, nem devolve o ódio vomitado contra ele. Em sua primeira aparição na série animada dos X-Men nos anos 90, Wolverine o chama de "louco", referindo-se a perseguição que ele enfrenta devido à sua aparência, mas Noturno responde que no mosteiro católico é valorizado pelo caráter de seu coração, e não por sua aparência. A fé de Noturno é testada quando traído pelo irmão Rinehart, que conta ao povo da cidade que desejava matá-lo que ele residia no mosteiro. No caos que se seguiu, Noturno não ataca nem condena Rinehart, mas simplesmente aponta que tal destruição, o mosteiro em chamas no fim daquele conflito, "foi o fruto de seu trabalho, não meu". Da mesma forma, confrontou a confissão de sua mãe Mística, que o rejeitou e disse diante dele que não desejou seu nascimento. Noturno não a perdoa à princípio, mas afirma por suas convicções que buscará forças para ser capaz de perdoa-la e assim deseja que ela possa também se perdoar. Nesse momento Mística percebe que sempre amou o seu filho.

                                            
 
Noturno escolheu desempenhar um papel, mas o mesmo acontece com todos nós. Todos nós escolhemos quem somos. Nossas ações são o que nos definem, não a nossa natureza. Ninguém realmente nasce "nobre" ou "bom". Mas uma vida de opressão, sendo considerado um demônio real, convenceu-o de que as pessoas têm naturezas intrínsecas. Ele é o X-Men em quem os outros mais confiam, mas é também aquele que mais precisa que os outros confiem nele. Para mim, essa luta interna entre a sua aparência exterior e as suas convicções é o que há de mais valoroso nele, e o tornam de longe o melhor personagem dos X-Men e um dos melhores da Marvel Comics.


Seja bem vindo de volta, Kurt!

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