sexta-feira, 1 de março de 2019

O RELATO DE UM HOMEM ADULTO DIAGNOSTICADO COMO AUTISTA



Ano passado, passei por uma avaliação neuro-cognitiva. Nem sequer imaginava que estaria fazendo algo assim naquele ano, uma vez que havia me planejado para me concentrar apenas em minha pós-graduação.

Fui então diagnosticado com a Síndrome de Asperger (SA), um transtorno do desenvolvimento que afeta a minha capacidade de me comunicar e de socializar. Para os leitores que por um acaso ainda não ligaram o nome a pessoa, isso significa que eu sou autista.

A pouco conhecida SA é uma forma leve do autismo. Um autismo de alto funcionamento, vulgarmente conhecido - e põe vulgarmente nisso - como "autismo inteligente", e eu gostaria de compartilhar esta experiência com os leitores deste blog.


Digamos que fui conduzido por mim mesmo, devido certos comportamentos que pareciam inexplicáveis. A opinião de um profissional experiente poderia ser de grande ajuda. Tive a sorte de encontrar uma excelente psicóloga, uma vez que foram dias de longos e tediosos testes.

Meses após iniciar aquela avaliação, recebi o resultado daquilo que eu já suspeitava. Após apresentar todos os resultados dos meus testes de QI, habilidades sociais, etc, ouvi da boca da doutora as seguintes palavras: "você está no espectro".

Doutora P: ... Síndrome de Asperger.

Doutor Nerd: ...

Doutora P: Sabe o que é isso?

Doutor Nerd: Estudei psicologia no primeiro período da universidade, mas foi há muito tempo, então não tenho certeza...

Doutora P: A Síndrome de Asperger é um distúrbio do desenvolvimento que afeta a sua capacidade de se socializar e se comunicar com eficiência... É uma perturbação do espectro autista.

Doutor Nerd: (gargalhadas)

Doutora P: O que é tão engraçado?

Doutor Nerd: "O que é tão engraçado?" Ora, é que eu meio já sabia disso...

Isso mesmo, meses antes de receber o resultado, inspirado em minhas próprias experiências, dizia a mim mesmo: "Se ao final da avaliação, a doutora disser que eu sou autista, não será surpresa nenhuma. Isso, aliás, explicaria muitas coisas".

A medida que a doutora me explicava o que era tudo aquilo, passou um filme na minha cabeça. De repente, todas as peças começavam a se encaixar. Tudo agora fazia sentido.


Diagnosticado, agora é seguir adiante numa nova etapa da minha vida, sobre aprendizagem e os desafios comportamentais e emocionais que outrora pareciam inexplicáveis para mim. É preciso iniciar um processo para aprender a viver mais adaptado com o cérebro de um Asperger, o que pode ajudar também em demais aspectos da minha vida.

A doutora, surpresa com a minha capacidade de entendimento do que acontece com a minha mente, teve ainda mais certeza do meu diagnóstico.

Doutora P: Incrível! Você sabe o que está acontecendo consigo mesmo! Como foi que você chegou a essa conclusão sozinho?

Doutor Nerd: Baseado em comportamentos de estereotipia... Tudo o que me acontecia batia com tudo o que eu aprendi sobre o autismo... Vendo documentários na TV, na internet, lendo livros na universidade e com exemplos na vida real... Todos os esteriótipos eram um tanto identificáveis.


No começo do ano passado, quando ainda nem imaginava que passaria por uma avaliação neuro-cognitiva, comecei a ter desconfianças sobre meu comportamento peculiar. Passava horas meditando e pensando sobre tudo isso.

Até que um dia, indo de carro para a universidade para encontrar com a minha professora orientadora do meu projeto de pós-graduação, eu tive um tipo de "epifania"...


Bizarro, não é? A minha capacidade de percepção do que há comigo é tão alta, que eu já desconfiava do meu próprio diagnóstico, mesmo sendo um leigo no assunto - não sou psicólogo - e, portanto, sem ter o conhecimento de que existiam formas tão leves de autismo que um portador poderia até passar desapercebido na multidão.

Durante toda a minha vida eu sentia que havia algo de errado comigo. E esse meu diagnóstico mudou esses pensamentos.

Quando soube do meu diagnóstico, percebi que nada estava errado comigo, mas eu sabia que algo estava prestes a mudar.

Como a SA é um transtorno ainda muito pouco conhecido, os seus portadores são frequentemente alvo de preconceito e discriminação. Esta síndrome afeta a nossa interação social recíproca e a comunicação verbal e não-verbal. Temos resistência em aceitar as mudanças, inflexibilidade de pensamento e campos de interesse estreitos e absorventes.


Nem todos os portadores da SA são superdotados. Isso é mito. Eles se tornam obcecados e apaixonados por certos campos do saber que requerem treinamento (matemática, música, etc), o que permite que eles se destaquem.

Desde criança, eu já tinha essa percepção de que era "diferente" frente aos meus colegas de classe. Mas o Asperger não é uma doença. Não somos esquisitos, nem loucos. É apenas a nossa maneira de receber e processar a informação que é diferente. Eu sentia muita necessidade de me explicar, porque me sentia incompreendido por meus colegas de escola.


E não são apenas as crianças portadoras da síndrome que sofrem, os seus pais também podem igualmente sofrer com o julgamento da sociedade.

As crianças com essa condição podem ser hipersensíveis a certos ruídos, cores, texturas, etc. Então se bloqueiam e se comportam de um jeito que parece "birra".

Há quem interprete esse comportamento como malcriação - Eu já ouvi muito isso! - e acham que os pais precisam ser mais enérgicos. Os pais, frequentemente, se sentem julgados e incompreendidos frente a sociedade. Eles sentem culpa.


Eu lembro de tudo agora. Minha mãe me levou a vários médicos quando eu era criança. E ninguém sabia ao certo qual poderia ser meu problema. Os pais acabavam injustamente culpados pela ignorância dos outros.

Uma criança com SA é muitas vezes categorizada como muito tímido - muitas delas sequer tem a habilidade de olhar nos olhos da pessoa com quem conversa. Na verdade, elas só precisavam de um pouco de atenção extra.

Diferente do "autismo clássico", as habilidades cognitivas do portador da SA estão em sua maioria preservadas e algumas delas estão inclusive muito acima da média (Meu QI de processamento é de 133), mas isso não é tão foda quanto parece.

Eu ouço todos os sons ao mesmo tempo, fico completamente sobrecarregado, não entendo nada da linguagem não-verbal e olhar nos olhos de outra pessoa é uma experiência quase dolorosa. A tendência é a de me impor um auto-isolamento.

Nas palavras da minha psicóloga: "Veja, você até sabe o que você tem... Você sofre porque você sabe o que está acontecendo com você, mas não tem as ferramentas para lidar com isso".


Falhamos em nossas interações sociais porque somos muito rígidos. Não entendemos bem a linguagem não-verbal e temos uma tolerância muito baixa para aqueles que não se encaixam nos padrões que estabelecemos. Eu passei por inúmeras situações hilárias justamente por todas estas características que acabei de descrever.

Resumindo, temos dificuldade em compreender o mundo em que vivemos. Imagine, viver completamente isolado em um mundo que você não pode compreender e vice-versa.

Finalmente tenho as explicações para todas as situações bizarras nas quais estive envolvido na infância e principalmente na adolescência e início da fase adulta. Surgem as explicações para os rótulos os quais a sociedade me impôs.

A SA pode ser uma forma muito leve do autismo, mas ela me afetou muito.

No dia seguinte ao diagnóstico oficial com a psicóloga, lembro-me de ter saído do meu trabalho e parar nos meus pensamentos no meio da praça: "Eu me sinto normal".

Por que, depois de todos esses anos, eu finalmente me senti "normal"?

Ainda estou tentando descobrir o que isso significa. Porém, por mais estranho quanto isso possa parecer, minha vida faz sentido agora. Eu não me sinto fora do lugar e desajeitado. Eu acho que a melhor coisa que saiu disso é agora ter o sentido de que minha vida inteira foi finalmente validada.

Quando eu digo às pessoas que sou "autista", e as reações delas são principalmente “Uau, eu nunca teria adivinhado isso. Você não age como se tivesse autismo".

Quero então dizer a elas: "E como eu devo agir?" Você não pode dizer que uma pessoa está no espectro apenas olhando para ela.


Enquanto tento explicar o que significa estar no espectro, posso vê-los começar a se interessar pelo que estou dizendo e começam a me fazer perguntas. Eu respondo da melhor maneira possível usando exemplos da minha própria vida.

Embora eu esteja feliz por finalmente saber qual o meu "problema", às vezes fico muito aborrecido, revoltado.

Como teria sido a minha vida se eu tivesse sido diagnosticado quando criança em vez de um adulto na casa dos trinta anos?

Eu me pergunto em meus próprios pensamentos: "E se eu fosse uma criança agora, eu seria diagnosticado? O quão diferente teria sido a minha vida se eu tivesse descoberto a SA com uns 13 anos de idade ou menos?"

Eu sempre tive uma grande tendência ao isolamento, fui alvo constante de bullying durante todas as fases da minha vida. Na faculdade era vítima de colegas e, pasmem, até mesmo de alguns professores.

Eu era um alvo muito fácil em meu distanciamento, em minhas poucas palavras e em meu temperamento pavio curto e intolerante.


Tenho características temperamentais muito complicadas para um homem que escolheu seguir a área da saúde como profissão. Perco a paciência muito fácil, e tenho uma tolerância extremamente baixa para com gente que categorizo como ignorante e arrogante.

Mas quem tolera gente assim, não é?

Quando me encontrava em algum grupo e esse tipo de pessoa dava sua opinião estúpida sobre um certo tema, antes dela terminar seu raciocínio, eu já sabia qual seria o final do seu discurso, e a minha tendência era me aborrecer e me afastar. Ou pior. Isso já aconteceu mesmo no meu ambiente de trabalho.

Mas ninguém suspeitava de autismo.

Passei por vários outros psicólogos e assistentes sociais antes desta recente avaliação neuro-cognitiva e nunca ninguém pensou na ideia de que eu poderia ter SA.

Era frustrante não saber porque me sentia tão diferente. Ninguém parecia saber.

E quanto mais eu leio sobre o autismo de Asperger, mais me eu vejo nele... Especialmente no aspecto social disso.

Esta poderia ser a resposta que eu estava procurando por toda a minha vida?

Interesses restritos, apego extremo a rotinas e rituais, dificuldades em compreender o abstrato, ser literal e muito racional, além da dificuldade de entender emoções e relacionamentos. Como não me dei conta disso antes?

Por isso muitos nos catalogam como tímidos acima de tudo, silenciosos, sem empatia e solitários.


Você que está lendo esta postagem tem filhos? É adulto e acha que precisa de alguma ajuda? Por que deve procurar ajuda e se tratar caso diagnosticado?

A SA pode ficar no caminho da sua carreira. Você parece nunca conseguir um emprego que reflete suas habilidades, mesmo que todas as credenciais sejam ótimas no papel.

A SA pode ficar no caminho do começo de suas amizades. Você tem dificuldade de fazer e/ou manter amigos, e não sabe porquê. Mesmo que envolvidos em uma atividade que você compartilha, você não constrói relação pessoal com outras pessoas.

A SA pode fazer você ficar obsessivo em determinados temas. Você poderia procurar saber sobre a oportunidade para expandir os seus interesses.


A SA pode dificultar a sua vida pessoal. Conhecer pessoas é essencial para conseguir trabalho, namorar e até mesmo encontrar um casamento feliz.

A SA pode dificultar o seu romance. Se namorar já é difícil para alguns, imagine para quem tem SA.

Precisa de ajuda? Que tal começar com um diagnóstico?


A SA pode ser a razão para você ter algum tipo de fobia. Você fica facilmente “esmagado” quando há muito estímulos sensoriais em atividades/eventos os quais você gostaria muito de fazer parte.


Adendo: O episódio da animação infantil Arthur When Carl Met George se aventura em um tema espinhoso (o autismo) para as crianças e lhes ensina com uma bela descrição o que é a Síndrome de Asperger.

Imagine que você está em um planeta estranho. É como a Terra, mas é um pouco diferente - as pessoas falam mais alto, dizem coisas estranhas e algumas coisas são mais engraçadas para você do que para elas. É difícil no começo porque as pessoas não te entendem e acham que você é estranho. No entanto, você aprende a se ajustar. Às vezes você encontra um interesse especial que ajuda você a lidar com a vida no planeta. Eventualmente, você e as pessoas encontram maneiras de se entender: elas falam mais quietamente e você usa as suas gírias. Embora você possa se encaixar, você sempre se sentirá um pouco diferente, mas tudo bem. (Esta não é a explicação exata no episódio, mas apenas uma versão condensada.)


SA pode estar lhe afetando na escola. Você pode não entender a linguagem não-verbal e a comunicação com os colegas e professores pode ser prejudicada.

Você pode obter a ajuda e as acomodações que você precisa para concluir os cursos, testes e entrevistas para o tão sonhado trabalho.


A SA pode ser um problema em uma relação importante.

O diagnóstico de SA pode ser a chave para a obtenção de serviços que você precisa.

Você pode ter encontrado problemas em toda a sua vida, ser isolado, com pouco dinheiro, ou mesmo na necessidade de uma melhor habitação.

O diagnóstico pode qualificá-lo para uma variedade de serviços e benefícios.


Você tem se sentido “diferente” a sua vida inteira. Agora, você está esperando para encontrar uma comunidade de pessoas que recebem quem você é, como você pensa, e até mesmo como você se sente.

O diagnóstico pode ser aquilo que faltava para você entrar em contato com grupos de apoio e se conectar com uma comunidade.

O diagnóstico pode inclusive abrir portas para novas amizades em grupos ou comunidades.


Eu acho que eu tinha duas coisas trabalhando contra mim enquanto crescia. A primeira foi que o autismo não era tão conhecido quanto é hoje...

Isso foi tudo que eu ouvi crescendo... que eu era tímido e quieto.

Isso sempre me deixou aborrecido...


Agora sinto que sou muito melhor compreendido pelas pessoas da minha vida.

É uma luta todos os dias tentando descobrir essa coisa chamada vida como alguém que está no espectro, mas com o apoio da minha família e amigos, sei que posso me tornar uma pessoa melhor.

Quando olho para trás e lembro do que eu passei. As experiências desagradáveis com as humilhações (aquilo que hoje chamamos de bullying) e os julgamentos, eu sinto muita revolta mesmo.

Será que se soubessem que eu era autista, aquelas pessoas teriam se portado de uma forma diferente?


Se você acredita que há um autismo verdadeiro, um autismo "severo", e que há um falso autismo, “leve”, fácil de lidar, que não precisa de nenhum suporte porque a pessoa namora, trabalha, escreve, lê, fala, e “é até criativa” não sabe o que é autismo.


Um autista que não tem “cara de autista”, é atacado como se fosse uma criatura muito grosseira, mal educada, sem noção nenhuma de civilidade.

Há autista que não consegue transitar pra vida adulta e fica em um limbo sendo julgado como incompetente, fracassado e inútil e achando que é verdade porque nem acesso a um diagnóstico ele tem.


Você não pode enxergar que há “autistas leves” que vivem pensando em se matar todo santo dia porque estão com desequilíbrios emocionais intensos causados por exigências sociais que são impossíveis de atender?

Se acha que só "autistas severos" têm crises, você não sabe o que é ser autista nesse país. Aqui a comunicação se dá muito nas entrelinhas. Todo vínculo de amizade, afetivo e profissional se dá por meio de uma linguagem altamente trabalhada no nível abstrato, cheia de não ditos.


Todos os autistas precisam de algum tipo de suporte. Alguns bem menos, outros bem mais.

O que nenhum autista precisa é de ser tratado como um falso autista que só faz o que faz e é do jeito que é pra chamar a atenção de alguém.

Esse tipo de tratamento só atrapalha, é como espancar alguém que está tentando se levantar e andar com as próprias pernas.



Outro dia, alguém muito próximo de mim mencionou o quanto cheguei em tão pouco tempo. Eu ainda fico frustrado com pequenas coisas que sinto que não devo fazer e com minha sensibilidade sensorial, mas estou aprendendo a viver como um homem no espectro do autismo.

E como eu disse durante a defesa da minha pós-graduação: "Se eu estou aqui hoje, defendendo a minha tese, deve haver um motivo muito especial. Graças ao auto-conhecimento que adquiri, agora me aceito como um neuro-atípico. Apesar de todas as minhas limitações cognitivas, graças ao apoio da família e dos amigos, eu pude superar todas elas. E, se eu sou capaz, qualquer um também é capaz".

O último ano foi uma montanha-russa, mas posso finalmente dizer que estou confortável em minha própria pele. É um ótimo sentimento!

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