domingo, 22 de agosto de 2021

REPRESENTAÇÕES DA CULTURA POP: QUEM FOI (E QUEM NÃO FOI) AMAKUSA SHIRO TOKISADA?

O blog pertence a um amante da história extensamente documentada, porém infelizmente distante dos livros didáticos. Sempre fui fascinado pela história da Idade Média e do Japão clássico. (Não se preocupe, parece chato, mas não é! Garanto que é uma postagem muito divertida!) E esta postagem une o medieval europeu ao medieval japonês. Melhor impossível! O período medieval da história foi uma época de grande turbulência e transformação e um capítulo de nossa história que nos encanta até hoje. Abrangendo o fim da antiguidade clássica até a ascensão da Renascença, a era também conhecida como Idade Média é mais comumente associada aos seus episódios mais sombrios: fome e pestilência, a barbárie da guerra. Toda esta visão, no entanto, muito influenciada pelo próprio preconceito de diversos historiadores. Os lampejos de progresso romperam por todo o seu período, de conquistas marcantes em governança, como a Carta Magna (de 1215), a avanços das artes, das ciências, da agricultura e o crescimento dos centros das cidades em toda a Europa. Como um apaixonado pela História, escrevo sobre um dos meus personagens históricos favoritos: Amakusa Shiro Tokisada!


Francisco Xavier, um dos cofundadores da Companhia
de Jesus, constam-se os registros que batizou mais de
700 mil para a fé cristã. (Quadro de Peter Paul Rubens)

(Esta não é uma postagem sobre religião, mas especialmente sobre História). A história do Japão em relação ao cristianismo adquire um tom sombrio. Inicialmente um país que tinha uma comunidade cristã próspera graças aos esforços de São Francisco Xavier e seus companheiros jesuítas, foi brutalmente exterminado durante uma campanha de perseguição do século XVII sob o xogunato Tokugawa. Entre essas vítimas está Amakusa Shiro Tokisada, de 17 anos, um samurai que foi executado 383 anos atrás por liderar a Rebelião de Shimabara. Sua história é bastante popular entre jovens católicos, especialmente aqueles que têm interesse por cultura pop japonesa, animê e videogame. A história de Shiro está repleta de tons de religião, justiça social e heroísmo, especialmente em face de um regime opressor. Alguns o chamaram para ser nomeado entre os santos da Igreja - ou, pelo menos, um mártir, embora eu diria que essa aclamação é um pouco discutível.


AMAKUSA SHIRO: SUA HISTÓRIA



O mapa mostra toda a ilha de Kyushu, com as principais cidades
provinciais (★) e as fronteiras das prefeituras (separadas por linhas
vermelhas). A caixa amarela emoldura aproximadamente a área afetada
pelo conflito. A seta laranja aponta para a Península de Shimabara,
onde o confronto final ocorreu. 


As regiões da Península de Shimabara e Amakusa na costa oposta eram anteriormente os dois domínios do daimyo cristão, Arima Harunobu, bem como Konishi Yukinaga (1558-1600), e assim o cristianismo estava bem espalhado e prosperando entre sua população nas terras remotas. No entanto, de 1616 em diante, Matsukura Shigemasa (1574-1630) e seu sucessor Katsuie (1597-1638) tomariam a área de vida, instituindo um governo autoritário, afetando drasticamente as vidas das pessoas comuns, que agora enfrentavam gradualmente a opressão e a exploração de seus senhores. 

No final de 1637, a população do domínio de Shimabara, lar de uma grande comunidade cristã, sofreu severa opressão de seu daimyo. O Cristianismo foi declarado ilegal, e seu daimyo liderou o ataque com execuções sádicas de cristãos, além de extorquir os aldeões com impostos injustos, pela força (e intimidação psicológica) se necessário. As perseguições foram intensificadas ainda mais sob o terceiro shogun Tokugawa Iemitsu, depois que ele assumiu formalmente o governo em 1623. 


Tokugawa Iemitsu

Na linha do tempo, passaram-se sete anos da nomeação Matsukura Shigemasa para o novo domínio em Shimabara. Mesmo que as restrições e punições tenham se intensificado, no início Shigemasa foi considerado negligente no cumprimento de seus deveres. Por exemplo, Shigemasa não executaria os sacerdotes que foram capturados, mas os chamaria ao castelo para manter conversas e interagir com eles. Isso traria a percepção de que ele era um governante tolerante. A situação era muito diferente na região, dois anos antes de sua chegada, quando o magistrado de Nagasaki estava encarregado dessa função, empunhando seu punho de ferro contra os cristãos.

Shigemasa, porém, sofreu uma mudança repentina, quando em visita obrigatória a Edo. Durante o Sankin Koutai (serviço oficial de atendimento à capital por um daimyo na era Edo), em uma audiência oficial com Iemitsu, ele foi severamente repreendido por seus erros de conduta. Para se proteger da punição, ele imediatamente ordenou que seus principais retentores fossem atrás dos cristãos em seu território quando ele retornasse ao domínio. A mesma pessoa, que antes tratava o padre de maneira comparável, planejaria agora uma atrocidade impensável após a outra para levar as pessoas a abandonar sua fé.


Um dos métodos de tortura que os crentes foram forçados
 a enfrentar, o Iouzeme - punição por aplicação parcial de
água sulfúrica ou imersão completa em termais vulcânicas
infernais de Unzen. 

Tortura e assassinato incluídos, mas não estavam limitados a métodos como o Mokubazeme (Cavalo de madeira/trenó, uma estrutura semelhante a um triângulo, em que o condenado se sentava em suas bordas afiadas por horas, tudo bem apertado, pernas abertas para os lados. Para intensificar o efeito de corte entre as pernas, pedras penduradas nos pés) ou Onsen Jigoku Zeme (para ferver prisioneiros vivos nas fontes termais vulcânicas infernais de Unzen). Se os condenados morressem no processo, eles seriam imediatamente eliminados no local, sendo jogados no abismo infernal de Unzen.

Seu filho, Katsuie, era nada menos que esse mal, tornando-se famoso por um método de tortura chamado Miodori. Camponeses desobedientes ou não contribuintes, considerados iguais aos cristãos, foram amarrados a um poste, envoltos em uma Mino (capa de chuva de palha) e incendiados. Isso porque, uma vez que a palha fosse incendiada, os pobres coitados se contorciam e se contorciam em agonia. Aos olhos de Katsuie e seus promotores, isso parecia divertido, como uma apresentação de dança na frente deles. A opressão em Nagasaki já era considerada dura, mas o que ocorreu na Península de Shimabara trouxe à tona toda a feiura de que a natureza humana é capaz.

Por meio desse regime de terror e castigo sistemático, a grande maioria das pessoas renunciou à fé, os missionários foram completamente erradicados. Como consequência, pode-se presumir que pouco antes da eclosão da revolta, deve ter havido apenas um punhado de crentes inabaláveis ​​sobrando. O número dessas células cristãs deve ter sido tão pequeno que não poderiam representar uma ameaça à segurança nacional. Eles devem ter se preocupado mais em salvar suas vidas diariamente do que em planejar uma rebelião em grande escala. O xogunato estava bem ciente desse fato, mas sob o pretexto de Rebelião de Shimabara sendo uma revolta cristã, o shogunato na distante Edo viu o momento ideal para justificar medidas rigorosas em direção a uma agenda política de isolacionismo. Além disso, a redução armada da rebelião liderou os guerreiros participantes, convocados de todos os cantos do país, para serem instruídos na perseguição da religião proibida e garantiu a aplicação completa em toda a nação até os dias finais do governo Tokugawa. 

As condições instáveis ​​pavimentaram o caminho para a agitação e, eventualmente, uma revolta, com Amakusa Shiro, o carismático adolescente da classe samurai, reunindo as tropas.


Amakusa Shiro como é frequentemente
retratado - um jovem belo de pele clara à moda
ocidental, colocando suas mãos protetoras
sobre suas terras. Sua aparência, na verdade,
é provavelmente muito diferente. 

Não se sabe muito sobre sua juventude, exceto que seus pais, ambos membros da classe samurai, foram convertidos à fé católica. Algum tempo antes dos eventos do levante, ele foi saudado por simpatizantes como um pseudo-messias, capaz de curar doenças e andar sobre as águas. Enfurecido com os crimes cometidos contra seus irmãos de fé, ele reuniu uma armada de mais de 40.000 camponeses da região, sob uma bandeira hasteando uma imagem do Santíssimo Sacramento, anunciada com as palavras em português, “Louvado seja o Santíssimo Sacramento” - “In hoc signo vinces”. Eles assumiram o quartel-general no Castelo de Hara, na esperança de uma possível ajuda portuguesa, e foram inicialmente bem-sucedidos em invadir várias cidades e sitiar vários castelos na área. Por meses, viveram com as abundantes provisões de comida do castelo e lutaram contra as forças imperiais que tentaram alcançá-los.


A bandeira de Amakusa Shiro Tokisada.
Note os dizeres Louvado seja o Santíssimo Sacramento
em português europeu.
 

A conduta de Shiro como líder parecia ser de um caráter mais espiritual, exortando seus seguidores a seguir algum tipo de práticas monásticas cristãs. Por todo o palácio, ele postou cartazes motivacionais com as palavras: “Agora, aqueles que me acompanham no cerco neste castelo, serão meus amigos no outro mundo”. Enquanto trabalhava para repelir as forças imperiais que os cercavam, eventualmente, ele seria traído por um de seus próprios homens, e em poucos dias o castelo seria invadido pelas forças imperiais, e seus habitantes - incluindo ele - seriam massacrados em 28 de fevereiro de 1638. 

A supressão desta revolta levaria o Cristianismo no Japão à clandestinidade por pelo menos dois séculos, com seus praticantes deixados sem os sacramentos e forçados a sincretizar sua fé com os costumes locais para evitar punições governamentais. Até a Guerra Boshin de 1868-1869, o levante de Shiro seria o último grande conflito nacional japonês.

Amakusa Shiro é uma das figuras mais incompreendidas tanto da perspectiva secular japonesa quanto cristã. Há um filme de 1962 que narra bastante sua vida e envolvimento na revolta de Shimabara. O longa em questão tem títulos diversos: The Revolutionary, El Rebelde, ou simplesmente Amakusa Shiro Tokisada

Com a ausência da presença missionária no Japão, havia muita perseguição religiosa e forte injustiça social, de modo que os camponeses eram obrigados a pagar elevados impostos afim de sustentar os luxos da nobreza local, isto é, os samurais, os quais os governavam de forma cruel. Tensão social e perseguição religiosa, fatores explosivos os quais motivaram aqueles pacíficos camponeses a uma revolta suicida contra o governo Tokugawa.


Amakusa Shiro Tokisada interpretado por Hashizo Okawa no filme
O Revolucionário de 1962.

O diretor do longa, Nagisa Ôshima, é tanto mais simpático a Shiro do que a própria historiografia católica que pesquisei. No filme temos um retrato de um bom homem, e genuinamente católico. Apesar disso, a revolta de Shimabara não está descrita como inspirada por religião, os motivos sociais falam tanto mais forte. Chama a atenção as belas cenas de oração, conforme a revolta avança essas cenas se fazem mais frequentes e os personagens, com toda a justiça, reagem a uma situação insustentável, aos desmandos, as torturas e a opressão dos samurais de Tokugawa e ao apoio que o mesmo recebera dos holandeses, os quais posicionaram seus canhões contra os católicos japoneses.



AMAKUSA SHIRO: O QUE ELE NÃO ERA






Amakusa Shiro Tokisada foi vítima de uma série de representações errôneas de seu personagem em várias franquias de animê e videogame, tais como:

1) Em uma saga filler do animê Rurouni Kenshin temos Shogo Amakusa, conhecido como "Filho de Deus", assim como também era apelidado o real Amakusa Shiro Tokisada, no qual foi inspirado. Líder de uma rebelião cristã de Shimabara contra o governo Meiji. Quando jovem, seus pais foram brutalmente mortos por perseguidores cristãos de Tokugawa, pouco antes de seu tio Hyouei ser capaz de levar ele e sua irmã Sayo (conhecida pelo nome cristão Lady Magdalia) embora.

Também era conhecido por operar milagres, curando diversas pessoas doentes, porém o segredo do seu poder miraculoso vinha de um grande saber adquirido de seus estudos em Medicina na Europa. Além do protagonista Kenshin Himura e seu mestre, Hiko Seijuro, Shogo também é um discípulo do Hiten Mitsurugi-ryu.


Animê Rurouni Kenshin:Shogo Amakusa e sua irmã Lady Magdalia,
perseguidos por serem cristãos.

Não era uma pessoa má, mas um homem muito compassivo e gentil no fundo de seu coração, nunca quis matar ninguém. Na verdade, sofria tormentos indescritíveis toda vez que tirava a vida de outra pessoa. Kenshin decidiu enfrentá-lo e trazê-lo de volta à luz. Arrependido de tudo o que fez, Shogo até pede a Kenshin que acabe com sua vida, embora seus seguidores o tenham convencido a continuar vivendo e guiando-os. O governo Meiji decidiu perdoar Shogo, mas também exilar a ele e seu povo para sempre.


Animê A Certain Magical Index: Amakusa-Style Remix of Church.

2) Amakusa Shiro Tokisada é o fundador de uma seita cismática, conforme mostrado em A Certain Magical Index - uma série de animê focada parcialmente na religião. A série o mostra como o líder original de um movimento religioso que se separou da Igreja Católica Romana algum tempo antes de sua morte e continua de uma maneira semelhante ao movimento Kakure Kirishitan no Japão, e evoluiu para institucionalizar católicos, budistas e a prática do xintoísmo (!). Contém sacerdotisas, pratica magia e acaba se fundindo com uma Igreja da Inglaterra.


Animê Fate: Amakusa Shiro Tokisada

3) Amakusa Shiro Tokisada é um feiticeiro sedento de poder, como descreve a série Fate. Embora, na realidade, ele tenha sido aclamado como um fazedor de maravilhas pelos habitantes locais, esta série vai além e mostra a ele como tendo recebido a habilidade de Deus de manifestar poderes milagrosos. Ironicamente, ele também compartilha um papel com Santa Joana D'Arc, a famosa Donzela de Orleans, que apesar de suas origens semelhantes como guerreiros com uma missão dada por Deus, a última foi canonizada pelo Papa Pio XI em 1930 e realmente era um caso com muitíssimas reivindicações de santidade.


Animê OVA Ninja Resurrection: representação antagônica de
Amakusa Shiro Tokisada e seus seguidores cristãos.

4) Mais popularmente, Amakusa Shiro foi um demônio (ou pelo menos possuído por um demônio). Um exemplo é o animê Ninja Resurrection de 1997, onde ele se junta às forças do Inferno como uma tentativa de obter poder, servindo na história como o antagonista central a quem os heróis devem matar para evitar que ele se torne o Diabo. Se isso não bastasse, a série retrata o Cristianismo de uma maneira totalmente antagônica. Não recomendo para quem tem suas sensibilidades religiosas.


Ninja Resurrection não é livre para todos os públicos.
(Ê, Tempo bom!)

Quando adolescente, eu era fascinado por esse animê RUIM regado de ultra-violênica e referências ao satanismo e ao estupro. Com uma ingenuidade infantil acreditei que Ninja Ressurrection foi uma continuação de maravilhoso Ninja Scroll, aliás foi assim que o OVA foi vendido para o público ocidental da época. 

Sim, não importam o que os críticos que esbanjam falsa intelectualidade queiram opinar... Ninja Scroll é e sempre será uma obra de arte!

Ninja Ressurrection é, por outro lado, uma abominação animada, uma história sem pé nem cabeça com um roteiro de eventos pra lá de bizarros. Temos um personagem que usa os seus próprios intestinos como arma! Como os descendentes de Yagyu Jubei, Tokugawa Ieyasu e Toyotomi Hideyoshi devem se sentir ao ver os mesmos sendo representados nessa atrocidade animada?

Mas querem saber... 

Ainda assim é muito bom! 

Animê ruim é muito bom! 

Sou fascinado por animê ruim!


Makai Tensho: Amakusa Shiro Tokisada.

5) Makai Tensho, filme de 1981, dirigido por Kinji Fukasaku e baseado em uma novel de mesmo nome de Futaro Yamada, começa no shogunato Tokugawa quando Yui Shosetsu conhece o velho Mori Soiken, que, na história, sobreviveu à rebelião de Shimabara e aprendeu as artes sombrias dos ninpou para se vingar. Sabendo que ambos desejam o destronamento do shogun, Soiken forma uma aliança com Shosetsu e revela um feitiço criado por ele, o Makai Tensho, que pode ressuscitar pessoas mortas e utilizá-las como seus fantoches. Eles logo reúnem um exército de guerreiros mortos-vivos e feiticeiros lendários, entre eles estão Amakusa Shiro Tokisada, Miyamoto Musashi e Araki Mataemon, e planejam usar suas habilidades sobrenaturais para destruir o shogunato. No entanto, Yagyu Jubei Mitsuyoshi, se liberta de seu controle e torna-se determinado por suas próprias razões para parar a rebelião antes que comece. 


Amakusa Shiro Tokisada em Samurai Shodown (2019).

6) O motivo principal que levou o dono do deste blog a querer escrever esta postagem veio quando do lançamento do trailer do personagem DLC Amakusa Shiro Tokisada para o game Samurai Shodown (2019). Considero o jogo de luta da SNK aquele com a melhor e mais rica história de todos, na qual grande parte dos seus personagens foram inspirados em figuras históricas reais. Antes dos eventos de Samurai Shodown, a minha "versão distorcida" favorita de Amakusa é ressuscitado pelo deus das trevas Ambrosia. No momento de sua execução pelo shogunato, o Amakusa histórico teria falado ante seus executores: "Em 100 anos, voltarei para me vingar". E na história do jogo é o que de fato acontece - sua morte aconteceu no século XVII, enquanto, no século XVIII, encarna no mundo dos vivos através do corpo de Hattori Shinzo (um dos filhos de Hattori Hanzo) em preparação para seu próprio avivamento. Seu enredo principal envolve roubar a pedra Palenke, um tesouro sagrado de uma tribo fictícia da América do Sul, que pretendia usar para trazer Ambrosia ao mundo mortal.


Diversidade étnica no game Samurai Shodown.
Tam Tam e Cham Cham, guerreiros indígenas maias.
Procure não pensar muito sobre seus designs polêmicos. 

Claro, como Samurai Shodown é apenas um jogo de luta, os seus desenvolvedores puderam utilizar de muitos anacronismos criativos e engraçados. O elenco do game conta com um ninja texano peidão de quase 3 metros de altura e um ninja loiro de olhos azuis natural de São Francisco, também nos Estados Unidos. Ambos os personagens de nacionalidade estadunidense deveriam, no entanto, ser mexicanos, uma vez que o Texas e São Francisco ainda pertenciam ao México no ano em que a história do game se passa.

A tribo indígena fictícia detentora do tesouro sagrado roubado por Amakusa é definida como Maia, constituindo de um outro erro cômico. Para começar, sua localização encontra-se na região conhecida como Green Hell, ou seja, no meio da floresta Amazônica.

Peraí... Maias na América do Sul?

Os irmãos venezuelanos Tam Tam e Cham Cham, os mais importantes representantes da tribo maia presente no game, citam em algumas de suas falas o deus Quetzalcoatl, uma divindade adorada tanto por Maias quanto por Astecas.

Tam Tam tem as suas vestimentas fortemente inspiradas na cultura maia, porém usa uma estranha máscara de pedra africana e porta uma grande espada semelhante a uma cimitarra, porém os maias não tinham tecnologia para fundir metais e produzir armas como espadas.

Cham Cham é uma garotinha de 12 anos que carrega um bumerangue como sua arma... Bumerangue? Afinal, sua naturalidade é amazônica, maia ou aborígene? Seu design é dotado de orelhas e um rabo de gato reais e ainda apresenta vários maneirismos felinos, como miar, sibilar e arranhar o oponente durante a luta. Como os maias adoravam os jaguares e as onças e muitos de seus deuses tinham características felinas, também acreditavam em pessoas que nasciam com as mesmas orelhas e rabo felinos de Cham Cham, mas ainda não se sabe com certeza se essas crianças jaguares eram como avatares entre o mundo dos vivos e o submundo, um sacrifício humano ou parte de um ritual de passavam para se tornarem reis. 

Nesta história, Amakusa Shiro Tokisada é um espírito louco e vingativo, ressuscitado por Ambrosia, um deus das trevas de aparência demoníaca, como um ser de destruição para estabelecer uma nova ordem mundial. Quando da primeira aparição de Amakusa como chefão final do primeiro game, primeira muitos jogadores o confundiram como uma mulher, devido sua aparência andrógena e voz feminina. A sua aparência e história foram em parte inspiradas no personagem homônimo do filme Makai Tensho, bem como em muitas das figuras artísticas do personagem histórico. A escolha da representação é muito justificável devido a admiração que os japoneses têm pela androgenia para retratar um homem belo e acima de todos os outros homens, como diria Saga de Gêmeos, "um homem que se sobressai entre o céu e a terra", perfeito para aquele apelidado "Filho de Deus".


 

Amakusa é descrito no game como um narcisista por natureza, o que acabou por atraiu originalmente para as tentações de Ambrosia. O retrato das visões do que os japoneses da época percebiam como o cristianismo: uma força antinatural do mal e uma ferramenta de conquista de forças externas. Uma vez que ele é liberado da posse do deus das trevas, ele retorna à sua persona viva como uma alma bondosa e misericordiosa de constituição justa.

No primeiro game da série, no final de Galford - que você pode conferir no vídeo acima - o espírito de Amakusa agradece ao ninja americano por libertá-lo das garras de Ambrosia. 

Fiel ao cristão histórico Amakusa, ele fala de pecado, misericórdia e salvação, especialmente em aparições posteriores. Guarda um profundo ressentimento contra a linhagem Tokugawa, a responsável por sua morte original, como pode ser visto em uma das cinemáticas de Samurai Shodown. Este é um retorno à sua inspiração histórica, onde o Bafuku liderado por Tokugawa o executou. É por esta razão que ele é extremamente hostil ao atual Tokugawa na série, Yoshitora Tokugawa, buscando uma morte lenta e dolorosa para o sucessor de Tokugawa e parentes.


Yoshitora Tokugawa.
"Você sentirá todo o peso do meu rancor.
Sua morte será lenta e dolorosa, Tokugawa
",
frase de vitória de Amakusa após derrotar
Yoshitora em Samurai Shodown (2019).


Ienari Tokugawa:
A inspiração de Yoshitora Tokugawa.

Se ele for vitimado pelo movimento "fatality" de Kusaregedo, o youkai cuspirá a cabeça de Amakusa após a devoração, referindo-se ao destino de sua inspiração histórica, que foi decapitado, com a cabeça colocada em uma lança como um aviso contra uma nova insurreição de cristãos contra o Shogunato. No final do personagem em Samurai Shodown IV, quando Hattori Hanzo vem ao seu encontro reclamando o corpo de seu filho Shinzo, o trágico personagem tem seu corpo e alma selados em um túmulo no qual surge, sob sua lápide, surge a seguinte inscrição: "O Filho de Deus jaz aqui".


A primeira aparição de Amakusa Shiro Tokisada no mangá
Samurai Shodown, fazendo referência a mais importante
figura do Cristianismo: Jesus Cristo.

No game, também é falado sobre a amante de Amakusa Shiro, uma bela jovem polonesa que fora sua amiga durante sua infância. Ela cresceu e se tornou uma mulher muito bonita e forte., mas infelizmente também morreu lutando durante a rebelião de Shimabara. Aparentemente, Amakusa esquecia aos poucos as feições da mulher que um dia amou, embora ainda guarde o seu crânio como o seu mais precioso tesouro. Toda essa história é contada no game Shinsetsu Samurai Spirits: Bushido Retsuden de 1997 para o Neo Geo DC.


Devido à sua fé e boa vontade antes de sua morte, a amante de Amakusa foi capaz de passar pacificamente para a vida após a morte, aparentemente transformando-se em um anjo. No entanto, uma vez que descobre que seu amado caiu nas mãos de Ambrosia, ela aparecerá no final do primeiro capítulo para tentar fazê-lo se lembrar dela. Amakusa, que manteve seu crânio em um santuário, negará sua importância para ele. No entanto, se ela tiver sucesso, Amakusa vai perceber o erro de seus caminhos e se juntar a sua amante no céu após sua derrota. Se ela falhar ou não aparecer, Amakusa amaldiçoará o herói com seu último suspiro.


A amante de Amakusa surge perante os heróis do jogo.

Seu sucesso depende do herói escolhido e de suas respostas em uma aldeia cristã japonesa. O protagonista precisa ajudar ativamente na situação difícil de sua aldeia e ser cortês com seus anfitriões. Como o cristianismo era uma prática proibida durante esse período no Japão, o protagonista precisa concordar em manter a religião de sua aldeia em segredo do governo. 


Amakusa é salvo por sua amada.



AMAKUSA SHIRO: SANTO OU MÁRTIR?






Shiro recebeu uma educação cristã em Nagasaki. Apesar de ser reivindicado o líder do levante de Shimabara, há surpreendentemente pouco a registrar sobre sua pessoa. Na época da rebelião, em sua tenra idade, foi descrito como uma criança maravilhosa, de rosto atraente e figura com habilidades retóricas. Por mais habilidoso que ele pudesse ser na pregação, mais duvidoso é que um jovem sem formação militar comandasse um grande exército rebelde. 

A falta de documentação deixa espaço para bastante embelezamento do personagem, que teve muitos retratos ao longo dos anos. Seu papel discutível na rebelião é uma coisa, mas seus poderes e aparência como hoje conhecidas são mais produtos do Kabuki (teatro clássico japonês), do Takarazuka (trupe de teatro musical feminino) e da cultura pop moderna do que fato real. A maior parte dos escritos, retratos e estátuas dele datam do final do período Edo ou mais tarde. Então, às vezes, foi-lhe atribuída a capacidade de conjurar milagres de vários tipos, mas mesmo aos olhos de missionários e padres, essas histórias devem ter sido consideradas charlatanismo.  

Com relação aos apelos para sua santidade, a respeito de suposições para causas para a beatificação e canonização dos santos - você pode consultar as referências deixadas no final da postagem - é dito que, para um candidato ser considerado santo, deve haver uma veneração popular da pessoa, uma biografia clara e concisa de sua vida pessoal e milagres atribuídos a sua intercessão. 

No caso de Amakusa Shiro, temos:


Igreja católica da região de Amakusa, resquício
da cultura portuguesa no Japão.

1) A falta de um culto popular de veneração. Embora exista um bom número de pessoas que o admiram, parece que seu culto não alcançou grande popularidade, mesmo entre os fiéis japoneses nos anos após sua morte, ao contrário de outros santos como Francisco de Assis, Pedro de Verona ou Estanislau da Cracóvia, que foram rapidamente reconhecidos após suas mortes.

2) Os vagos detalhes que cercam sua vida. Além do fato de sabermos que ele era um samurai católico, detalhes sobre as virtudes heroicas que ele praticou em sua vida, sua vida devocional ou o grau de seu envolvimento militar estão seriamente ausentes. A ausência de evidências em torno deles, como demonstrado acima em meu relato de sua vida, tornaria difícil saber com certeza se ele realmente é alguém que vale a pena ser considerado um modelo, ou não.


Cena do filme Silêncio (2016), dirigido por Martin Scorsese.

3) Nenhum caso milagroso verificável atribuído a ele. Finalmente, a falta de intervenções milagrosas atribuídas a ele é um grande problema. De acordo com a teologia cristã, se não há nenhum caso de milagres atribuído a ele, então não é possível a certeza de que ele está realmente está no céu, a não ser um palpite de segunda mão. A falta de milagres póstumos também lançaria dúvidas verificáveis ​​sobre quão legítimos foram os milagres atribuídos a ele em sua vida. 

Mas, mesmo que ele não seja um santo, ele poderia ser considerado, no mínimo, um mártir cristão? 

Há três condições necessárias para que um seja considerado como tal:

I. A pessoa deve ter sido condenada à morte

II. Ele foi morto por ódio ao Cristianismo (em odium fidei), expresso por palavra ou intenção

III. A pessoa deve aceitar sua morte voluntariamente e enfrentá-la humildemente

Alguém que morre defendendo uma falsa concepção do cristianismo, ou para fins medicinais, sociais, militares ou egoístas, seria desqualificado para ser rotulado de mártir. 

Dito isto, a morte de Amakusa Shiro cumpre todas as condições?


AMAKUSA SHIRO: MORTO EM ODIUM FIDEI?





No papel, dado o uso de imagens cristãs pelas tropas de Shiro, como o Santíssimo Sacramento em suas bandeiras, pode-se ver isso como um levante cristão, como o levante de Vendéia durante a Revolução Francesa do século XVIII ou as Guerras Cristeras do século XX no México. Mas enquanto esses dois grupos deixaram claro que pretendiam lutar para defender a fé contra os ataques de um governo pagão, a principal intenção de Shimabara foi contestada por estudiosos ocidentais e japoneses. 

Analisando a troca de cartas entre as tropas de Shiro e as forças imperiais, mostram que, embora a liberdade de praticar o cristianismo fosse uma das exigências, o mesmo acontecia com a cobrança de pesados ​​impostos sobre eles pelo daimyo local. Na verdade, eles insistem que o último parecia ser de maior importância do que o primeiro e, portanto, consideram o evento como motivado pela economia, ao invés da religião (FARIAS, J. A., 2016; OHASHI, Y., 2010).

Por outro lado, entre os rebeldes, a prática do cristianismo constituía uma parte significativa de seus deveres não combatentes, essencialmente marcando uma identidade sobre eles, assim como os combatentes de Vendéia e os Cristeros (KREEFT, N., 2011). 

As forças imperiais, lideradas por Matsuda Nobutsuna, um daimyo japonês, manifestaram seu desejo de matar rebeldes cristãos em suas negociações, poupando aqueles que não estavam ou estavam dispostos a apostatar. Dado o contexto em torno do levante e da violenta campanha empreendida contra a fé durante e após o fato, acho plausível que Shiro tenha sido executado em odium fidei


AMAKUSA SHIRO: UMA MORTE PIEDOSA?





No entanto, a terceira condição é onde eu sinto que o caso de Shiro desmorona. Antes de sua execução, ele teria proferido como suas últimas palavras: “Em 100 anos voltarei para me vingar”. Compare isso com os registros de outros mártires humildemente aceitaram suas mortes sem qualquer indício de má vontade para com seus captores (Conforme registros na historiografia e tradição cristãs - favor, conferir REFERÊNCIAS ao final da postagem):

Santo Estêvão rezou pelo perdão de seus assassinos, um deles em uma irônica reviravolta sendo o futuro mártir e missionário São Paulo de Tarso

O Beato Noel Pinot e os Mártires de Compiegne rezaram silenciosamente as palavras de abertura da Missa (Salmo 42) e cantaram o Salve Regina respectivamente enquanto caminhavam para a guilhotina.

São Thomas More e São John Fisher enfrentaram a morte com coragem, recusando-se anteriormente a trair sua fidelidade ao papado ao reconhecer Henrique VIII como chefe da Igreja Inglesa

São Jean de Brebeuf e seus companheiros, também conhecidos como os mártires norte-americanos, suportaram com calma as torturas impostas por seus captores nativos americanos

São Josaphat Kuntsevych rezou por seus supostos assassinos ortodoxos orientais anticatólicos.

No Japão, e muito antes de Shiro, o próprio imperador Toyotomi Hideoyshi, sentindo-se ameaçado pelo cristianismo, ordenou a banimento de religiosos em 1587 e mais de 3.000 cristãos foram martirizados. São Paulo Miki foi batizado em tenra e era um japonês estudando para se tornar padre e cujo pai era um líder militar, conhecia a história de sua nação, entendia a religião budista e era capaz de superar seus sacerdotes. Em 1597, Miki e seus companheiros foram martirizados em Nagasaki. Os soldados de Hideoyshi os amarraram às cruzes com faixas de ferro em seus pulsos, tornozelos e gargantas. Em seguida, tiveram seus corpos transpassados com lanças. Muitas pessoas vieram assistir às mortes cruéis. Estas são suas últimas palavras registradas: “Tendo chegado a este momento da minha existência, creio que nenhum de vós pensa que quero esconder a verdade. É por isso que vos declaro que não há outro meio de salvação senão aquele seguido pelos cristãos. Desde este caminho me ensina a perdoar meus inimigos e todos os que me ofenderam, de bom grado perdoo o rei e todos aqueles que desejaram minha morte. E oro para que obtenham o desejo do batismo cristão”. Nesse ponto, ele voltou os olhos em direção a seus companheiros e começou a encorajá-los em sua luta final. "Como meu Mestre", murmurou Paulo, "eu morrerei na cruz. Como ele, uma lança perfurará meu coração para que meu sangue e meu amor possam fluir sobre a terra e santificá-la em seu nome”.

Se as últimas palavras de Amakusa Shiro Tokisada foram de fora aquelas registradas, de acordo com o que os cristãos creem, teriam um cheiro de heresia, uma vez que fazem referência à reencarnação. Por que ele também sentiria necessidade de amaldiçoar seus opressores? Não faria mais sentido colocar toda a sua preparação na contemplação de uma felicidade eterna com o seu Deus, ou cometer um ato de contrição perfeita como um mártir? Como resultado, fica uma dúvida positiva sobre chamá-lo de mártir cristão - seus momentos finais simplesmente não se somam a nenhum deles.




CONCLUSÃO















Para resumir, a rebelião de Shimabara foi parcialmente motivada por uma mistura de fatores econômicos e religiosos, mas dada a aversão do shogunato à fé durante aquele tempo, é plausível que a morte de Amakusa Shiro tenha sido motivada pelo último motivo. 

A vida de São Josafá Kuntsevych da Ucrânia teve algumas semelhanças com a de Amakusa Shiro Tokisada, particularmente seu zelo à sua fé desde a juventude e sincera esperança de unir a todos sob esta bandeira, levando muitos ortodoxos orientais a se converterem. Porém, os seus compatriotas ortodoxos, que o viam como um traidor, o mataram em 1623. Comparando as histórias dos dois personagens, no entanto, faltaria a Shiro, em questões espirituais, aquilo no que São Josafat se destacou, com muitas conversões genuínas e numerosos milagres atribuídos. 

Enquanto Justo Takayama (1552-1615), outro samurai católico perseguido, pode terminar a sua vida pacificamente nas Filipinas, já cristã na época, o que aconteceu a Shiro foi lamentável, torturado e morto por Tokugawa. O irônico é que finalmente os historiadores japoneses estão reconhecendo Amakusa Shiro Tokisada como uma figura de fato heroica. No entanto, ele não enfrentou a morte com humildade, mas sim com fúria e vingança. E adicionado ao fato de que não se sabe muito sobre sua vida pessoal e dúvidas gerais sobre a autenticidade de seus milagres, teólogos estão dispostos a se referirem a ele como um ferrenho defensor da fé cristã, mesmo não estando entre os mártires da Igreja.



REFERÊNCIAS


Jake A. Farias, "The Desperate Rebels of Shimabara: The Economic and Political Persecutions And The Tradition of Peasant Revolt" (The Gettysburg Historical Journal, Volume 15, Artigo 7, 2016).

Yukihiro Ohashi, “The Revolt Of Shimabara-Amakusa” (Boletim de Estudos Luso-Japoneses, Vol 20, 2010).

Nadia Kreeft, "Deus Resurrected - Um novo olhar sobre o cristianismo na rebelião Shimabara-Amakusa de 1637" (2011).

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