quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

PAZ NA TERRA: A MELHOR FÁBULA DE NATAL


Mês passado, numa noite dessas, estava assistindo a sessão de desenhos animados clássicos da década de 1930 da MGM no Tooncast quando me deparei com uma verdadeira relíquia. Um cartoon fantástico que assistira uma única vez em minha infância nos já longínquos anos 80 e que de fato chegara a imaginar que sequer existira, sendo apenas um produto da minha imaginação.
Mas era real, e foi uma das imagens mais fortes da minha infância, uma fábula de Natal sobre a extinção da humanidade e o nascimento de um novo mundo.
De volta a infância, numa época em que realmente valia a pena sentar na frente da TV e assistir a toda a variedade de atrações que ela nos oferecia, desde desenhos animados, Tokusatsus, programas educativos e atrações musicais, os desenhos animados, já velhos naquele tempo, eram presença garantida principalmente nas manhãs de Sábado. Naqueles dias, assistia as velhas animações de 1930 e 1940 de Tom e Jerry e Pernalonga que não eram tão inocentes quanto poderiam parecer, e talvez por isso mesmo nós adultos ainda gostamos tanto deles. Somente anos mais tarde é que eu realmente compreenderia o que havia visto, uma experiência estranha como o contexto de uma mudança de memória. Eu estava olhando para os sonhos e fantasias das pessoas daquela época, antes mesmo dos meus pais nascerem, não filtrados pelo politicamente correto.

 
Peace on Earth (Paz na Terra) é um curta animado de 1939, dirigido por Hugh Harman, e trás um cenário completo para um especial de Natal, desde a neve, as decorações e enfeites e ainda as músicas de fundo.

 
 
Uma típica canção natalina é entoada pelos primeiros personagens a aparecerem. Estamos em uma aldeia habitada por furries adoráveis criaturinhas antropomórficas da floresta, embora seja inquietante o detalhe de que as suas casas em miniatura tenham capacetes de soldados como telhados.


Um velho esquilo caminha passando por três jovens esquilos que cantavam a canção natalina do início da animação. O velho esquilo entra em uma casa e acorda dois pequenos esquilos com um "Feliz Natal e paz aos homens de boa vontade!"

 
"O que são homens, vovô?" pergunta uma das crianças.

"Não existe nenhum homem no mundo, não mais", diz o avô.

Depois disto eu já sabia que este não era um desenho comum.

 
O vovô esquilo começa a narrar um conto angustiante sobre a queda da humanidade por meio da guerra. A cena muda para um mundo de pesadelos, onde os céus estão sempre cheios de fumaça e os edifícios em ruínas, há botas de soldados marchando, tanques militares cruzando as estradas, linhas de baionetas, e formações de aviões, completando um cenário desolador.


O retrato que o vovô tem dos humanos não é nem um pouco simpático, e é exatamente isto que ele revela aos seus netos. "Homens" são criaturas monstruosas sob casacos pesados, capacetes e máscaras de gás. Esta é a Primeira Guerra Mundial, a guerra das trincheiras em larga escala, e estas imagens devem ter causado muito mais impacto sobre um público que ainda se lembrava do conflito anterior.
As guerras continuam e continuam neste mundo escuro e desolador,  até que, finalmente, num terreno baldio sem vida, os dois últimos seres humanos confrontam-se, mas a batalha termina sem vencedor, os dois lados perdem, ambos os soldados morrem, suas identidades permanecem obscurecidas por suas máscaras de gás.

 
Embora não haja sangue visível, o segundo soldado convulsiona em dor e angústia. Seu último ato é levantar seu próprio rifle e atirar de volta, presumivelmente matando o primeiro atirador. Seguindo ordens? Hábito? Apenas por impulso? Independentemente disso, ele é mortalmente ferido, e afunda na lama, com sua mão nua apontando para o céu. Com um último espasmo, a mão afunda na lama. Fim.
Lembre-se, isto começou como um desenho animado com esquilos cantando canções de Natal.
 
 
Há um momento de silêncio surpreendentemente longo, mostrando um mundo totalmente vazio, em contraste com a violência anterior. Em seguida, a música recomeça, e as criaturas da floresta saem das suas tocas e encontram uma igreja em ruínas e uma bíblia.


A sábia coruja velha lê um trecho que diz: "Não matarás." Os comentários da coruja: "se parece com um tipo de livro de regras. Mas eu acho que os homens não prestaram muita atenção."

 
A coruja também lê: "Vós reconstruireis as antigas ruínas".

 
 
Inspirados, os animais agora colocados em roupas, e andando sobre as patas traseiras, constroem a sua própria civilização nos escombros da guerra humana, uma cidade chamada "Peaceville", o que nos leva de volta à família esquilo.


As crianças esquilo voltaram a dormir e o vovô esquilo as deixa em seu berço com um "Paz na terra, e boa vontade", mas não adiciona "para os homens", curiosamente.
 
Feito em 1939, com a perspectiva de que mais uma guerra sangrenta na Europa era quase uma certeza, esta foi uma apaixonada e confusa declaração de pacifismo para o público americano. Não poderia ter sido feita alguns anos mais tarde, quando os desenhos eram decididamente pró-guerra: o Pernalonga enfrentou um Hermann Goring que mais parecia um Hortelino Troca-Letras com sotaque alemão, e o Pato Donald mostrou o horror da vida sob o nazismo. Nenhum deles entretanto mostrou este tipo de apocalipse.
Esta estranha combinação de Ragnarok e fofura ficou em minha memória durante anos, embora eu só tenha visto uma única vez, até que o Tooncast revelou não ter sido isto apenas um sonho. Dadas as imagens perturbadoras do meio da história, não é de estranhar que não foi um desenho muito reprisado.
Parte de mim já sabia que a Evolução não funciona assim, mas aceitei a mensagem como licença poética. O ciclo de devastação no qual o mundo encontrava-se trouxe uma nova e estranha luz para os desenhos animados. Será que todas essas histórias realmente retratam um mundo no qual a humanidade já havia sido aniquilada? Se você cavar sob a casa do Mickey Mouse, você encontraria uma vala comum de esqueletos humanos?
A visão de um Armagedom, como a retratada em Paz na Terra, nunca foi descartada por mim, ainda mais que, sendo uma criança dos anos 80, vivi a Guerra Fria e, mesmo não entendendo nada do que acontecia, os riscos de uma nova guerra mundial eram claramente divulgados pelos telejornais que meu pai me obrigava a assistir.
A TV Educativa (TVE canal 2) me mostrou o quão grande e complexo é o universo, mas também como pequeno e frágil é nosso mundo, e que o nosso tempo neste planeta poderia ser finalizado por uma guerra nuclear. Pior ainda, um inverno nuclear poderia, teoricamente, acabar com toda a vida na Terra, sem esquilos ou mesmo baratas para reconstruir.

 
Se você foi um moleque nos anos 80, este tipo de ideia estava sempre no ar. Quando perguntava a minha mãe sobre isso, ela me respondia que se isso fosse acontecer, teria já acontecido. Apreciava o que ela dizia, mas isso não ajuda muito.
Eu sempre fui obcecado por táticas militares, armas de guerra e outras coisas semelhantes. E os anos 80 foram muito variáveis com relação a um desses meus "hobbies". Os quadrinhos dos GI Joe prometeram que a sede subterrânea da equipe dos seus soldados poderia sobreviver a um ataque nuclear, então, pelo menos, alguma coisa iria sobreviver e, presumivelmente, reconstruir.
 
Vendo agora Paz na Terra, como um adulto, as imagens e o seu entendimento apresentam-se de uma forma totalmente nova em minha mente. Enquanto as criaturinhas da floresta parecem ainda mais adoráveis, as cenas de guerra causam mais impacto.
Também descobri que há um remake. Boa Vontade para os Homens (1955, dirigido por William Hanna e Joseph Barbara, MGM) segue a mesma história como o original, embora com ratos em vez de esquilos, e um tema cristão ainda mais forte. A maior diferença é que a raça humana é exterminada através de destruição mútua assegurada por uma bomba nuclear, representada por duas explosões que se espalham sobre o planeta.
Embora atualizado para refletir a ameaça de uma aniquilação nuclear na Guerra Fria, Boa Vontade para os Homens não tem o mesmo impacto de um Paz na Terra. A destruição e morte do original horrorizavam precisamente porque desceram para um nível muito pessoal, físico, e agora passam a ter uma representação mais abstrata. Não havia nada comparável ao testemunhar dos dois últimos seres humanos assassinando um ao outro.
Vendo Boa Vontade para os Homens o que pensamos seria: os seres humanos eram tão falhos que, mesmo sem armas nucleares, mesmo sem líderes corruptos, acabaram por condenarem-se a extinção. Nesse sentido, filmes de ficção científica como O Planeta dos Macacos retratam o universo como trancado em um ciclo interminável de genocídio, escravidão, guerra e reconstrução.
 
Thundarr, o Bárbaro
A série animada Thundarr, o Bárbaro apresentava um mundo que veio após o nosso (embora a causa tenha sido um desastre natural, não a guerra), mas cheio de vida, aventura e coisas legais. Um conceito muito semelhante ao apresentado na série de quadrinhos de 1960, Kamandi: The Last Boy on Earth, do grande Jack Kirby, que contou com imagens espetaculares como a famosa Estátua da Liberdade na paisagem em ruínas.
Tão fantástico como Thundarr e sua laia eram, pelo menos, eles apresentaram a ideia de que se houvesse um apocalipse, haveria algum tipo de vida depois, o mundo seria transformado, mas não aniquilado. Do ponto de vista de uma criança, era uma espécie de conforto.
Quando a Guerra Fria terminou, eu ainda era muito criança, e isso não significou o fim do risco de estarmos caminhando para uma nova guerra. Mas uma parte do crescimento é aprender a não pensar sobre certas coisas.
As crianças de hoje enfrentam uma constante, a ameaça do terrorismo em primeiro plano. No entanto, isso não é o mesmo que perceber que, a qualquer momento, uma cadeia de eventos pode começar e literalmente acabar com a raça humana, se não com toda a vida na Terra. A ideia de uma extinção total era uma coisa pesada para lidar quando eu ainda estava lidando com a ideia da mortalidade individual.
Entrando na adolescência, li um livro para um trabalho escolar chamado Não se Esqueçam da Rosa, que contava o drama vivido por uma jovem japonesa muito bonita e inteligente, descendente dos sobreviventes do ataque com a bomba atômica lançada sobre Hiroshima. Este livro lançava uma luz sobre ambas as ideias da extinção total e da mortalidade individual das pessoas tão próximas a nós e de nós mesmos.

 
Paz na Terra foi feito quando a Primeira Guerra Mundial ainda estava viva na memória das pessoas, e apenas alguns meses antes da Segunda Guerra começar na Europa. É possível compreender a visão de quando os esquilos governarão a Terra como um apelo a esperança de que a próxima geração vá pensar sobre a destruição causada pela presente, e fazer melhor.
Após o fim da Guerra Fria, a mensagem de Paz na Terra é, na verdade, mais relevante, quando a guerra ocorre em um nível mais individual, e como a decisão de uma pessoa em matar ou não pode ter um impacto enorme.

São mais de 75 anos! E Paz na Terra continua relevante!

Um comentário:

  1. Revi essa animação em 2016 no mesmo tooncast, e são 8 minutos primoroso. Excelente texto. Estou procurando ele dublado em portugues mas só encontro no original, se houver algum link pra ver/baixar e puder disponibilizar. Valeu

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