sexta-feira, 2 de abril de 2021

FORREST GUMP E EU

Os melhores filmes de todos os tempos foram realizados durante a década de 1990.

Não tenho dúvidas disso.

Forrest Gump - O contador de histórias foi um filme realizado em 1994 e foi um dos mais importantes da minha vida. Os 40 anos da história estadunidense, da Guerra do Vietnã a Watergate, sob os olhos de um rapaz ingênuo, mas cheio de boas intenções. Apesar de participar ativamente e até influenciar alguns destes importantes acontecimentos, Forrest, em nenhum momento, esquece o seu grande amor de infância, Jenny Curran. Basicamente, um filme sobre como um homem, apesar de todas as suas limitações cognitivas, foi capaz de ter uma vida incrível!

Forrest Gump (interpretado por Tom Hanks) é um personagem conhecido e amado por todos por sua inocência e peculiaridades. Apesar de se assumir num princípio que a sua particularidade era gerada por um tipo de retardo mental, ao analisarmos cuidadosamente seu comportamento e atitudes, podemos identificar que Forrest na realidade era portador de um Transtorno do Espectro Autista (TEA).


Forrest Gump era autista?


“GUMP!!! Qual é o seu único propósito neste exército?!!! "

"Para fazer o que você me disser, sargento instrutor!!!!"

“Maldição, Gump!!! Você é um maldito! gênio!!! Esta é a resposta mais notável que já ouvi!!!! Você deve ter um maldito QI de 160!!!! Você é um maldito talentoso, soldado Gump!!!!!”


Para a maioria das pessoas, a cena entre o instrutor de exercícios do Exército e o recruta Forrest Gump foi apenas mais uma situação da série de incidentes divertidos onde Gump se encontra durante toda a sua história. Mas também é um dos muitos sinais espalhados pelo filme de que o personagem pode ser autista.

Cada vez mais têm-se abandonado o termo Síndrome de Asperger para se referir ao autismo nível 1, em especial devido ao histórico do médico Hans Asperger em colaboração com o regime nazista (denunciado no livro As Crianças de Asperger de Edith Sheffer) e por fomentar o capacitismo. Ademais, o DSM-5 tornou a designação obsoleta e o CID-11 consolidará a sua substituição.


Dentro dos critérios do DSM-5 para o autismo, descartando possíveis diagnósticos alternativos, como transtorno de Rett ou transtorno desintegrativo da infância de acordo com a observação evidências fornecidas no romance e filme, encontramos:

Critério A: Déficit persistente na comunicação e interação social em diversos contextos, manifestado pelos seguintes (atualmente ou também antecedentes):

A1. Déficit na reciprocidade socioemocional, o que pode levar a aproximações sociais anômalas e problemas para o desenvolvimento normal e seguimento da conversação, problemas para compartilhar interesses ou, como é o caso de Forrest, suas emoções e afetos, igualmente há problemas para responder as interações sociais. 

Esse déficit é sobretudo evidente na sua relação com Jenny, os amigos e companheiros dela e nas múltiplas vezes em que visita os distintos presidentes, nas quais não é capaz de ler as situações.

A2. Déficits nas condutas comunicativas não-verbais utilizadas nas interações.

Dificuldades na compreensão e uso de gestos como é o caso do personagem e falta total ou parcial de expressão facial ou comunicação não-verbal.

A3. Déficit no desenvolvimento, manutenção e  compreensão das relações sociais.

É difícil ajustar a conduta a contextos, compartilhar brincadeiras, fazer amigos e há ausência de interesses por seus iguais, como é demonstrado pelas poucas amizades que ele mantém durante toda a sua vida.

Critério B: Padrões restritivos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades que se manifestam em dois ou mais dos seguintes pontos, atualmente ou por antecedentes

B1. Movimentos, utilização de objetos ou falas estereotipadas ou repetitivas (estereotipias motoras simples, alienação a mudanças de lugar dos objetos, ecolalia, frases indiossincráticas).

B.2. Insistência em monotonia, excessiva inflexibilidade de rotinas ou padrões ritualísticos de comportamento verbal ou não-verbal (grande angústia frente a pequenas mudanças, dificuldades com as transições, padrões de pensamento rígidos, rituais restritivos, necessidade de tomar o mesmo caminho ou de comer os mesmos alimentos cada dia).

B.3. Interesses muito restringidos e fixos que são anormais quanto a sua intensidade ou foco de interesse (forte apego ou preocupação por objetos incomuns, interesses excessivamente circunscritos ou perseverantes).

Forrest apresenta uma não especificada deficiência mental que o faz diferente dos demais. Entretanto, isso também o impulsiona a querer triunfar em tudo o que faz e superar-se dia a dia, apesar das complicações tão grandes que se apresentam.


"Você só tem que ficar de olho na
bola..." 
Por algum motivo, o
pingue-pongue era muito fácil
para ele.

B.4. Hiper ou Hipoatividade aos estímulos sensoriais ou interesse inabitual por aspectos sensoriais do entorno (indiferença aparente a dor/temperatura, respostas adversas a sons ou texturas específicas, olfação ou palpação de objetos, fascinação visual pelas luzes ou o movimento).

Critério C: Os sintomas devem estar nas primeiras fases do período de desenvolvimento (mas podem não se manifestar totalmente até que as demandas sociais superem as capacidades limitadas ou podem estar mascaradas aprendidas em fases posteriores da vida).


Ver minhas fotos antigas é uma experiência esclarecedora.
Nunca olhava para as pessoas atrás da câmera, tinha um olhar
sem vida, duro como estátua, ausência do sorriso social e,
quando eu me forçava a sorrir, fazia uma careta. 

Critério D: Os sintomas causam deterioração clinicamente significativo no social, laboral e outras áreas importantes do funcionamento habitual.

Critério E: Essas alterações não se explicam melhor pela descapacitada intelectual (transtorno do desenvolvimento intelectual) ou por atraso global do desenvolvimento. A incapacitação intelectual e o TEA frequentemente coincidem. Para fazer um diagnóstico de comorbidades de um TEA e incapacidade social, a comunicação social deve estar abaixo do previsto para o nível geral de desenvolvimento.

Quando Forrest era criança, a sintomatologia era uma marcada deficiência para a comunicação social e uma série de padrões restritivos no seu comportamento o qual dificultaram desde tenra idade seu desempenho escolar assim como suas habilidades para socializar com seus semelhantes. 


"Corra, Forrest, corra."
O pequeno Gump que mal consegue andar,
devido um problema na coluna, precisa
correr para se salvar do bullying das outras
crianças. Quando hoje vejo o filme,
lembro do meu passado, e esse é um
dos momentos que mais me tocam.

Forrest cumpre o critério D, apresentando uma disfunção clinicamente significativa ainda que seja um personagem altamente funcional com múltiplas compensações que facilitam a sua comunicação com os outros e com muitas dificuldades para compreender situações sociais as quais afetam suas relações sociais e limitam o número de pessoas com as quais consegue se relacionar o que gera muito mal-estar emocional.


Quando acompanhei a jornada do personagem na década de 1990, ainda era uma criança e me identifiquei muito com seus valores e ideais, assim como com a tragédia e a realidade de sua vida diária. Com minha ingenuidade de criança, me diverti e ri bastante com o Forrest Gump, sem me dar conta de que estava rindo de mim mesmo.

O Forrest Gump é um personagem que amadurece em sua experiências ao longo do filme, embora permaneça sendo sempre o mesmo. É tolerante, gentil e tem uma impressionante habilidade para perdoar e aceitar as diferenças, em outras palavras, Forrest Gump é idêntico ao meu eu criança e adolescente.

Não escrevo isto apenas pelo fato de hoje conhecer no meu autismo a resposta para todas as situações as quais vivenciei. Forrest Gump lembra muito a mim mesmo da complicada fase adulta, por isso escrever sobre um filme como esse implica ter que aprofundar situações difíceis e dolorosas, mas sem dúvida alguma, cale a pena porque deixam um ensinamento muito valioso.

O que chama muito a atenção, é observar a perseverança que Forest Gump tem frente a vida e possui qualidades como o amor, a humildade, a entrega, a força e uma grande generosidade. O mesmo tempo, é um homem que mantem uma visão muito inocente sobre as personas e portanto, é muito difícil crer na maldade humana. Isto muitas vezes lhe causa dor e conflito, mas o mais importante é que nunca deixa de lutar e de empreender os sonhos que tem.

Um elemento central do filme é a influência que tem a família sobre o ser humano ao longo da vida. Forest Gump sempre se mostra próximo a suas convicções e da educação que durante a infância recebeu de seu mãe.

O protagonista é muito inteligente, diferente da impressão que a maioria das pessoas tem dele, porque sempre se adapta as situações que em que se encontra. Nos dá lições muito importantes através da perseverança e da valentia. Também podemos ver a bondade em suas intenções e em cada um de seus atos. Demonstra uma grande lealdade, já que apesar das humilhações, não deixa a seus amigos em nenhum momento.

Aprendemos aquilo de mais valor na vida: a qualidade humana. Nos faz refletir sobre o tratamento que como pessoas todos merecemos e por último, podemos apreciar que a vontade e a fortaleza, são capazes de alcançar qualquer objetivo.

O filme assegura que Forrest apresenta uma deficiência intelectual, mas não é evidente que ele tenha deficiências em suas funções intelectuais e de ele fato foi capaz de concluir os seus estudos tanto básicos como superiores sem aparente dificuldade e por isso não cumpre com os critérios para um transtorno de desenvolvimento intelectual.  

Nem o autor Winston Groom, nem a estrela Tom Hanks ou o diretor Robert Zemeckis jamais comentaram sobre sua opinião sobre se Forrest deveria ou não ser retratado como autista. Na verdade, na época em que Groom publicou o romance, em 1986, o autismo ainda era mal compreendido e não amplamente reconhecido pela maioria das pessoas. 

Caso soubéssemos do verdadeiro final da história do personagem, ele certamente deve ter terminado a sua vida desconhecendo a sua própria deficiência. O meu caso é parecido, vivendo 3 décadas da minha vida no mesmo desconhecimento. Forrest Gump e eu enfrentamos uma sociedade que vê nossas características autistas como fraqueza ou mesmo desvio de caráter e, além disso, que prega que homens dignos, íntegros e virtuosos teriam um comportamento oposto ao nosso.

Eu me identifico muito com Gump em suas adoráveis e destacáveis características presentes em sua história e também muito comuns às pessoas autistas, especialmente às crianças autistas: somos menos preconceituosas e mais aceitadores das diferenças, somos verdadeiros e não somos inclinados a praticar bullying, questionadores das autoridades quando estas são injustas, honestos e leais, atenciosos à detalhes, observadores e mais perdoadores àqueles que erram e se desculpam, somos menos propensos a sermos antiéticos e somos empáticos a nossa maneira. Por estas características, Gump conquistou muitas pessoas, mesmo o amargurado tenente Dan, que, à sua maneira, demonstrou gratidão por ter a sua vida salva, em uma das cenas mais emocionantes do longa.


Winston Groom, autor de Forrest Gump.

Teria sido extraordinário se Winston Groom tivesse criado o personagem com o autismo em mente e todas as evidências apontassem para a ideia de que ele simplesmente pretendia que Forrest Gump fosse um indivíduo de baixo QI que tropeçou em alguns dos eventos mais históricos da história recente. Mas uma coisa sobre arte e literatura é que ela está constantemente em processo de reavaliação e interpretação por parte do público e da crítica. Para muitas famílias e profissionais (como analistas de comportamento aplicado) que trabalham regularmente com indivíduos no espectro do autismo, os comportamentos de Gump atingem um ponto de reconhecimento.


"Idiotas são os que dizem idiotices"


Gump passa pela vida como um trapalhão inepto, alheio aos sinais e normas sociais, mas possui a capacidade de se concentrar em detalhes técnicos e seguir instruções claras com precisão de laser. Vê-lo desmontar e remontar um rifle de batalha M-14 no quartel é muito parecido com assistir um autista savant construindo castelos com Legos em precisão e velocidade fluindo de pura dedicação à tarefa.

E as pessoas com formação militar e um olho afiado que notaram as decorações no uniforme Classe A de Gump mais tarde no filme notariam que ele levou essa dedicação ainda mais longe: ele usa o maior distintivo de pontaria disponível no Exército.

Gump consegue feitos incrível com muito foco e intensidade. Seu foco em dirigir seu barco de camarão mostra comprometimento e perseverança, e, embora outros interpretem isso como pura estupidez, seu método compensa no final.




A vida é como uma caixa de chocolates


Colocado em um ambiente com regras e sistemas bem definidos, o Gump se destaca. Quando lhe é dito que a chave para o sucesso em jogar pingue-pongue é nunca tirar os olhos da bola, não há um segundo de tempo de jogo em que ele o faça. Além disso, sua prática é obsessiva, tanto com outros jogadores quanto por conta própria, por horas e horas... o suficiente para levá-lo à China para competir pelos Estados Unidos na diplomacia do pingue-pongue.

Analistas do comportamento aplicado que trabalham com pacientes autistas já viram esse tipo de foco antes e podem muito bem ter feito o mesmo uso dele que o instrutor de exercício de Gump e os professores de pingue-pongue fizeram. Eles também viram muitos pacientes com TEA que têm um tipo de energia nervosa, um tipo de hiperatividade e movimentos motores repetitivos que os analistas tentam redirecionar para comportamentos mais saudáveis... correr, por exemplo, assim como Forrest faz.

A capacidade de canalizar os comportamentos obsessivos em ações positivas é algo que a mãe de Forrest tem em comum com os esses analistas de comportamento. A lição dela para o seu filho, incentivando-o a abraçar a vida e aceitar que "você nunca sabe o que vai conseguir" é uma boa lição para todos, autistas ou não, se lembrarem.

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