Não! Você não entrou no blog errado!
Cuecas têm todo o direito de curtirem séries sobre garotas mágicas!
É nosso direito!
Tenho, é claro, meus títulos favoritos que gosto de citar como exemplos.
Sailor Moon é a quintessência da série de garotas mágicas super-heroínas (e merece uma postagem só para ela!).
Revolutionary Girl Utena é a quintessência da série de garotas mágicas mais ambiciosa.
Princess Tutu é a quintessência inesperada de uma incrível série de garotas mágicas.
Shugo Chara! é a série de garota mágica por excelência.
Guerreiras Mágicas de Rayearth é um dos maiores clássicos do gênero, o qual a versão animada tive o privilégio de ver dublada.
E Cardcaptor Sakura é... Bem, uma das melhores e mais ousadas séries de animê a serem exibidas na TV brasileira.
Sim!
Então, após uma apresentação tão entusiasmada, o que pode haver de errado com a série?
Esta é uma postagem idiota que visa a problematização de um seriado inofensivo?
Longe disso!
A palavra certa não seria problematização, mas uma análise fria acerca de pontos polêmicos escancarados nas páginas do mangá original e sabiamente suprimidos em sua versão animê.
E se você tem problemas com spoilers, talvez devesse tomar cuidado com que vai ler. Mas garanto que não entrego muito do que possa estragar a sua experiência.
Se bem que ainda existe uma forma de entregar spoilers sobre a série, visto o seu já distante lançamento?
Cardcaptor Sakura foi a primeira história de garota mágica que cheguei a acompanhar também em formato mangá.
Eu não conhecia muito da reputação do Clamp, o grupo das senhoras mangakás responsáveis pelo título, uma vez que o seu único trabalho que já conhecia era Guerreiras Mágicas de Rayearth, animê/mangá inclusive onde se encontram, na minha opinião, os melhores personagens criados pela turma.
Hikaru é a maior heroína do universo de garotas mágicas;
Zagato é o "vilão" mais fodão do estilo;
Caldina tem uma cara de pau monumental, muito gostosa, foi minha paixão de infância.
Caldina, minha deusa! |
Cardcaptor Sakura, apesar de provar-se um tanto açucarado demais para o meu gosto, sua história e os seus personagens são especialmente envolventes.
Fui capaz de apreciá-lo, mesmo que ainda não estivesse muito familiarizado com o gênero.
Embora a história não fosse especialmente marcante, tanto o mangá quanto o animê continuamente quebram minha suspensão de descrença com suas representações de crianças do Ensino Fundamental que letargicamente discutem conceitos abstratos durante o recreio.
Em ambas as versões, Sakura Kinomoto, a heroína, apresenta uma personalidade cativante e é uma pena o fato das suas criadoras parecerem tratá-la mais como uma boneca da moda do que como um ser humano, o que faz dela não marcantemente interessante.
A história em mangá começa parecendo açucarada, mas vai aumentando gradualmente a sua estranheza, tudo isso ainda mantendo um verniz doce.
Primeiro, Sakura tem uma queda por Yukito, o melhor amigo de seu irmão mais velho Touya, o que não é grande coisa porque isso pode acontecer na vida real.
Já os sentimentos de Touya por Yukito não eram muito claros durante uma boa parte da história no animê, mas foi gradualmente ficando claro que o irmão de Sakura se preocupava muito com esse seu amigo.
Touya e Yukito: No animê era só na "brotheragem"? |
A relação dos dois jovens era tão sutil na versão animada da obra que muitas pessoas que assistiram Cardcaptor Sakura na TV Globo pelas manhãs, faixa destinada naqueles bons tempos à programação infantil com desenhos animados, sequer foram capazes de entender que eles eram muito mais do que apenas amigos.
O relacionamento de Touya e Yukito era realmente muito sutil, porém não tão sutil quanto o relacionamento da oficial de polícia Maggie Sawyer e a repórter Toby Raines apresentado na aclamada animação Superman Animated Series de 1996.
Superman Animated Series: Maggie Sawyer e Toby Raines: apenas boas amigas? |
Isso mesmo!
Todo mundo assistiu o desenho animado do Superman lançado em plena década de 90 e sequer se deram conta de que aquelas duas personagens eram namoradas.
Já imaginou se fosse nos dias de hoje?
Provavelmente haveria muitos protestos nas redes sociais, acusando a Warner, como dizem os jovens de hoje, de lacração (seja lá o que for o que isso significa!), ou de expor as crianças à relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo, mesmo que este tenha sido retratado de modo tão implícito e quase inexistente.
Touya estava longe das suspeitas por ter namorado durante um tempo Mizuki Kaho quando esta foi sua professora no Ensino Médio (Garanhão?).
A professora que tirou a virgindade do Touya. |
O irmão de Sakura confessou seus sentimentos, e Kaho, ao invés de agir como uma professora deveria agir, começou a sair com o rapaz e não foi demitida e nem foi para a cadeia!
Bom... Nenhum sexo é retratado ou fica implícito na história, mesmo no mangá.
A intimidade física nunca vai além de segurar as mãos, o que não desculpa o Clamp por estabelecer alguns relacionamentos muito estranhos.
Chega então o episódio 66 de Cardcaptor Sakura, o mais bonito, artisticamente falando (a qualidade da animação e do roteiro), no qual Sakura declara estar apaixonada por Yukito e este confessa que há muito tempo já sabia disso, mas, apesar da felicidade que sentia por receber tanto amor de uma pessoa como ela, em uma cena muito doce, ele explica à criança que o sentimento dela é apenas ternura, como o sentimento presente entre irmãos ou entre pais e filhos.
Cardcaptor Sakura 66: Sakura confessa seus sentimentos à Yukito. |
De fato, Yukito, fisicamente, lembra bastante o professor Fujitaka Kinomoto, o pai de Sakura.
Fora isso, o rapaz ainda revela amar uma outra pessoa.
Sakura pergunta: "E essa pessoa seria o meu irmão?"
Yukito se surpreende com o fato da menina ter descoberto o seu segredo e responde: "Sim. Mas não sei se ele sente o mesmo por mim..."
... e o Yukito deixou a Sakura na Friendzone. |
Descobrimos durante o mangá e o animê que o pai de Sakura se casou com a mãe dela, Nadeshiko, quando esta ainda estava no colégio onde ele lecionava, o que pode ser um pouco estranho, mas não totalmente... talvez.
Na vida real, há muitas pessoas com histórias parecidas.
Aqui ainda não dá para acusar Cardcaptor Sakura de não ser realista, porém...
Fujitaka não tem passado, nem família, na verdade ele é (spoilers), apenas no mangá, a reencarnação do mago Clow, ou melhor, uma de suas várias reencarnações.
Uma revelação impressionante para o pobre, dedicado e sorridente professor.
Só no Japão mesmo vemos um professor sorrindo o tempo todo.
(Porque naquele país quem educa é realmente valorizado!)
Nadeshiko, ao contrário, era de uma família muito endinheirada.
Nadeshiko: Facilmente uma integrante do meu Top 10 waifus dos animês. Por Osamu Tezuka! Que mulher linda! |
Fazendo as contas, chegamos facilmente a chocante revelação que, quando o casal se conheceu na escola, Nadeshiko tinha apenas 15 anos.
E quando tiveram o seu primeiro filho, Fujitaka deveria estar com 25 anos, enquanto Nadeshiko teria 16 anos!
Sério mesmo, Fujitaka?!
Nadeshiko era menor de idade quando você a embuchou!
Isso não dá cadeia no Japão?!
Fujitaka: "Parece que um anjo caiu em cima de mim..." |
Mas, para a família da esposa de Fujitaka, o problema no relacionamento dos dois não era uma questão de diferenças etárias, mas o fato de ele não ser não ser rico, isto é, as diferenças de classe sociais.
Clamp demonstra com Cardcaptor Sakura um estranho fetiche pelo romance professor-aluno, uma vez que há ao menos 3 casos presentes nesta obra, sendo dentre todos a dupla Rika e Terada a mais problemática e aquela a qual motivou a escritura desta postagem.
Rika é uma das colegas de escola de Sakura, sendo constantemente descrita como muito madura para a sua idade.
No animê, o seu amor pelo seu professor é totalmente platônico e não correspondido.
O professor Yoshiyuki Terada também é apresentado como um desentendido, como se não tivesse consciência dos sentimentos de Rika para com ele.
Ainda nesta versão animada, Rika chega a dizer que acha Terada muito parecido com seu pai, o que poderia classificar o sentimento dela como ternura apenas, do mesmo modo como são os sentimentos de Sakura por Yukito.
Enquanto no animê, temos algumas cenas de trocas de olhares como estas:
No mangá, Terada responde aos olhares de Rika e até cora (WTF???):
Também na versão impressa, Sakura e Tomoyo pedem conselhos românticos à Rika porque sabem que ela já sai com alguém mais velho e, para finalizar, Terada presenteia a menina com um anel de compromisso (???) e ela... aceita...
Uma aliança... de compromisso... |
No animê, também temos o conhecidíssimo episódio dos ursinhos de pelúcia.
Rika costura um ursinho para presentear o seu professor, quando Tomoyo lhe diz que o dia do aniversário dos ursinhos é o dia em que você os entrega, e se você o entrega a uma pessoa de quem gosta e esta põe no ursinho o seu nome, o amor é verdadeiro.
Terada aceita o presente, mas não corresponde aos sentimentos da menina.
Já no mangá, contudo, antes de Rika explicar o significado por trás do nome dos ursinhos, Terada já se adianta e diz que chamará o seu ursinho de "Rika"...
Também no mangá, Rika está para encontrar seu professor em uma praça e ela consola Sakura ao falar sobre amores à distância.
A Sakura já foi embora? Estamos sozinhos agora? |
Rika não pode estar com a pessoa que ama e, quando Sakura pergunta o motivo, ela responde: "Por seu trabalho".
Por seu trabalho... e por outras coisas... não?
Sinto muito Clamp, um homem adulto com uma menina de 10 anos não é amor, é pedofilia.
Enquanto isso, a apresentação melosa nunca vacila, o que é, em si, uma conquista artística significativa.
Talvez seja por isso que as crianças desta obra não se comportam como crianças.
Clamp não carece de talento artístico, seja no desenho ou na escrita, poderiam criar crianças meio convincentes se quisessem, então concluo que não quiseram.
Se as crianças em Cardcaptor Sakura se comportassem como crianças, isto provocaria o sentimento natural de repulsa na plateia quando essas crianças se envolvessem em situações românticas com adultos.
Fujitaka e Nadeshiko: quem somos nós para julgar? |
A combinação de designs de personagens de animê moe e caracterizações irrealisticamente adultas servem para amortecer a resposta normal.
E, claro, todo mundo é bonito dentro deste universo idealizado pelo Clamp: Não há crianças desajeitadas ou adultos feios.
Agora isso é errado!!! Ela tem só 15 anos!!! |
As mangakás têm tanto sucesso em permear suas obras com um ar de inocência que é fácil imaginar dizermos a elas: "Parte disso é meio pervertido", e ouvir a resposta delas com os olhos arregalados: "Bem, eu não tinha ideia!"
Para uma protagonista, Sakura é decididamente alheia: Ela tem uma vaga ideia de que Rika tem um “namorado mais velho”, mas não sabe quem é, ou quantos anos ele realmente tem; não sabe da obsessão de Tomoyo por ela; não está presente quando Eriol e a professora Misuki Kaho anunciam seu amor um pelo outro; e também não sabe sobre a história de Touya com a mesma Kaho.
Sakura e Syaron: Caramba, os dois ficam ótimos juntos! |
No final, Sakura está em um relacionamento canônico com seu antigo rival, Syaoran, sem parentesco nenhum com ela e ainda da sua mesma idade, tornando esta uma relação incomum na história!
Justiça seja feita, Clamp trata Sakura muito melhor do que muitos "fãs", já que ela tem a duvidosa honra de ser a criança fictícia mais abusada sexualmente na internet... eww!
De acordo com sua página na TVTropes: “Um tema que permeia os trabalhos do Clamp é que o amor transcende tudo, particularmente aquela coisinha chata chamada gênero”. Foram educados demais para notar que também o retrata transcendendo aquelas pequenas coisas irritantes chamadas "idade e consanguinidade".
Chobits. |
Possivelmente, a apresentação mais clara da visão de mundo de Clamp está em Chobits, no qual sua visão filosófica presente afirma que, como todos são diferentes, as inclinações românticas de todos são diferentes e cada pessoa deve encontrar a sua felicidade individualmente.
Amor romântico, de acordo com Clamp, não tem propósito ou objeto fixo.
A concepção de amor de Clamp está metafisicamente enraizada na filosofia pós-moderna, especificamente, em Jean-Paul Sartre que propôs a ideia de que, para os seres humanos, a existência precede a essência, o que significa que não existe uma natureza humana fixa. A implicação final dessa ideia é que não há causa final, ou seja, nenhum propósito, para a existência humana à parte da vontade individual.
Jean-Paul Sartre: Conheci o seu existencialismo em minha última graduação. |
Um sistema metafísico mais antigo e mais rigoroso do que o de Sartre sustentou-o como um princípio de que nada pode existir sem existir como alguma coisa, o que significa que a identidade (essência) necessariamente acompanha a existência em todos os casos. É também um princípio desse sistema mais antigo que a causa formal implica a causa final, portanto, uma vez que admitimos que o termo humano é um universal referindo-se a um grupo de objetos distintos e identificáveis, devemos também admitir que há um propósito para a existência humana.
Por que eu escrevi tudo isso?
Seria só para aumentar o tamanho da postagem?
Também.
Mas não foi só por isso.
Sou de um tempo em que animês eram muito menos conhecidos e começavam uma invasão silenciosa nas TV's abertas.
Naquela época, conspiracionistas fanatizados com mentalidades de seitas eram apenas uma minoria barulhenta que apontava o "diabo" em tudo o que não era "cristão" e, infelizmente, a sociedade permitiu que eles ganhassem corpo.
Se para estes grupos de ódio encontravam em Dragon Ball Z, Pokémon e Yu-Gi-Oh! motivos para acusar as produções japonesas de promoverem o satanismo, Cardcaptor Sakura seria um prato cheio se tivessem tido à época paciência para assistir.
Censuras e resistência das emissoras de TV em exibir animês eram muito frequentes graças à parte dessa opinião pública negativa.
Lembram da comunidade do finado Orkut "Deus, destrua o Japão" surgida logo após o terrível terremoto de magnitude 8,9 que devastou a costa noroeste do Japão em 2011 e o ódio que divulgava contra aquele povo por supostamente "promover o homossexualismo e a pedofilia por meio da cultura pop"? (Perderam o tempo deles espalhando "fake news" e rogando pragas. A admirável competência do povo japonês reconstruiu em pouco tempo o país.)
E hoje, com muito mais facilidade de trocar e transmitir informações falsas, pensem no estrago que poderia ser feito.
Isso é muito preocupante.
Mas voltando a Sartre e Clamp...
O existencialismo de Sartre poderia fornecer um irrefutável argumento intelectual para uma censura, o qual hoje qualquer um com habilidade para pesquisar poderia ter acesso. Os referidos grupos de ódio, com a maior facilidade de compartilhamento de informações via redes sociais, podem mesmo utilizar da racionalidade para embasar os seus argumentos irracionais.
E vejam que no caso em questão, a proibida relação do professor e da aluna, seria impossível refutar. Se alguém argumentar que certas relações sexuais são contrárias à dignidade humana, o contra-argumento inevitavelmente volta que se trata de amor, e certamente você não se opõe ao amor, não é? Esse contra-argumento só é inteligível porque o homem pós-moderno perdeu a capacidade de distinguir diferentes tipos de amor.
“Amor, não sexo”, diz o anônimo criador de memes.
Não importa que Terada dê a Rika um anel de noivado, cujo propósito é conhecido por todos e não importa que a série de mangás termine com ela indo para um encontro secreto com ele.
Se Terada realmente amasse Rika, verdadeira e corretamente, manteria suas mãos sujas longe dela.
A mensagem original das Clamp era passar um amor não sexualizado e baseado unicamente nos sentimentos puros, mas a mesma obra se contradiz ao mostrar que a relação dos dois personagens é completamente secreta.
Por que Terada espera escondido atrás de uma árvore para se encontrar com Rika até que Sakura vá embora?
Por que eles se encontram secretamente a sós na biblioteca se o seu amor é verdadeiro?
Se não fazem nada de mal e seu amor é inocente, por que precisam se esconder e fazer tudo a sós?
Assim, infelizmente, o mangá pode estar passando a ideia errada de que menores de idade podem ter relações com adultos contanto que estas sejam mantidas em segredo.
Constantemente é dito que Rika é muito madura para a sua idade, como se isso justificasse a pedofilia.
Por que exatamente Cardcaptor Sakura, uma franquia açucarada sem conteúdo sexual, é tão insanamente popular entre os chamados lolicons?
Acho que a resposta é porque para eles a história se passa em uma espécie de mundo de fantasia pedófilo, um universo alternativo onde as crianças são apenas adultos em miniatura e onde ninguém nunca ultrapassa quaisquer limites sexuais, porque parece que nunca houve nenhum, em primeiro lugar.
Com seus acertos e erros (graves erros), Clamp exemplifica os distintos tipos de amor em um mundo inocente e cheio do boas intenções.
Mas o caso de Rika e Terada... é melhor nem falar.
Masaki Amamiya e a recordação de sua neta Nadeshiko. |
Nadeshiko e Fujitaka, tirando a parte em que a mãe de Sakura tinha apenas 15 anos quando se conheceram, nos deixaram lições sobre a importância de respeitarmos as escolhas de um ente querido e que não sejamos possessivos, não permitindo que ele seja feliz vivendo a sua felicidade, já que, para quando superarmos, pode ser tarde de mais.
Creio que poderia ter sido muito interessante ver uma história em que Fujitaka encontra o amor com uma outra pessoa depois da morte de Nadeshiko.
Veríamos um exemplo de amor verdadeiro onde a nova mulher respeite o amor de Fujitaka por sua falecida esposa.
O grande problema da ideia é que o reencontra entre os pais de Sakura que ocorreu na mangá não teria o mesmo impacto.